domingo, janeiro 29, 2006

Conversa com FREDERICO LOURENÇO

O Poesia Ilimitada fez um mês de vida no passado dia 21 e trava hoje conversa "de café" com FREDERICO LOURENÇO (Lisboa, 1963), autor entre outros livros, de Amar Não Acaba (2004), A Formosa Pintura do Mundo (2005) e a trilogia Pode Um Desejo Imenso (2002), O Curso das Estrelas (2002) e À Beira do Mundo (2003), bem como diversas traduções do grego como Hipólito e Íon, de Eurípedes, e Odisseia e Ilíada, de Homero, todos nos Livros Cotovia. Um pretexto para falar de poesia.


João Luís Barreto Guimarães - Frederico, sei que é um excelente leitor de poesia que inclusivé traduz com mestria. Como é que se apercebe que está perante um bom poema?

Frederico Lourenço - O primeiro verso, para mim, conta imenso. Veja-se a lírica de Camões! Mas o poema tem de ter, logo à partida, qualquer coisa que vença a minha desconfiança. Parto sempre desconfiado para a leitura e fico à espera do primeiro clique que me diga "gosto, genial!" Mas uma coisa é certa: se for poesia tipo "prosa arbitrariamente dividida em verso", esqueça. Detesto.

JLBG - É verdade que certos poemas arrancam de forma portentosa. A lirica de Camões - devedora também da poesia medieval onde o mote era, por natureza, forte - é bem exemplo disso. Mas que tipo de "cliques", como diz, são esses?

FL - Felicidades de expressão ou de linguagem, não sei. Às vezes será a música do verso. Uma combinação inesperada de palavras, ou uma combinação harmoniosa: uma "cálida juntura", como dizia Horácio. Mas a música para mim é fundamental. E tem de ser música relativamente clássica, para agradar aos meus ouvidos. Isto não significa que o poeta tenha de ser antigo. Píndaro, claro, adoro. Mas o Rui Coias também tem uma toada clássica, para mim. Você, João Luís, já me soa mais contemporâneo. O seu verso já me assalta os ouvidos com sons e ritmos mais fora da minha estética.

JLBG - Significa, ao que julgo entender, que a poesia será sempre para si música (aliteração, assonância, onomatopeia, eufonia, rima, ritmo), como base do poema, sobre o qual repousam imagens, metáforas, metonímias, sinédoques, etc? Parece-me muito interessante essa perspectiva porque parte do som para a ideia mais do que da ideia para o som.

FL - Pois. Mas não sei se será bem assim. É facto, no entanto, que há várias condicionantes biográficas que me caracterizam como leitor de poesia. Primeiro, o facto de ter querido ser músico até aos vinte anos, e de ter estudado piano e cravo. Depois, o envolvimento profissional com a poesia grega: a minha tese de doutoramento foi um estudo exaustivo de todos os ritmos nos cantos líricos de Eurípides. Depois, o facto de eu ser prosador, enquanto praticante de literatura. Isto leva-me a querer encontrar na poesia que leio algo que não é a escrita que pratico como escritor. Mas um poema para me agradar tem de conciliar ideia e som, ou, quando muito, emoção e som.

JLBG - A conversa evoluí por caminhos que me interessam bastante: acredita, então, numa fronteira, numa linha entre a poesia e a prosa? Neste fim de século pluralista em que a colagem invadiu a pintura, desde Rauschenberg, o lixo invadiu a escultura, como com Beuys, a BD invadiu as ruas, como com Haring, a fala quotidiana mais coloquial tomou de assalto a música, como ocorre no Rap, enquanto leitor desagrada-lhe ver a poesia invadir territórios da prosa? Em que medida julga ser a poesia uma "arte pura"?

FL - Poesia a invadir o território da prosa é coisa para mim muito ambivalente. Há os modelos consagrados da Antiguidade, claro. Platão é o melhor prosador da língua grega, mas lá vemos, a dada altura do "Banquete", um hexâmetro dactílico a infiltrar-se no discurso de Ágaton. E tanto a prosa grega como a latina tinham as chamadas cláusulas rítmicas: o remate do parágrafo ou do raciocínio era em ritmo poético. Na literatura moderna, especialmente na portuguesa contemporânea, devo dizer que detesto prosa dita "poética". Agride-me os nervos e os ouvidos, mais até do que a prosa arbitrariamente dividida em verso a querer passar por poesia. Aquela prosa "encantatória", cheia de repetições, assonâncias e sabe-se lá mais o quê. Que coisa mais calista! Leia-se Mann, leia-se Musil, leia-se Anthony Powell. Isso sim, isso é Prosa. Em relação à outra pergunta, poesia para mim é, de facto, com a música, a Arte Pura. Em que medida? Pois, aí é que o João Luís me apanhou...

JLBG - Não o pretendendo provocar, de modo algum, pergunto-lhe se numa perspectiva horizontal da ars poética - das sucessivas vanguardas ao longo dos tempos, portanto - não teme que a sua formação clássica lhe condicione a recepção da novidade? A poesia surrealista, por exemplo, ou a poesia concreta disseram-lhe alguma coisa quando as leu? As nossas leituras primevas serão condicionantes do nosso gosto futuro? Mais ainda: procuraremos na obra dos outros a nossa própria voz?

FL - Acho que há um risco grande de não compreensão da minha parte relativamente a certas (pretensas) vanguardas. De facto, o surrealismo e o experimentalismo na poesia dizem-me pouco ou nada, por si só. Mas se por surrealismo entendemos Herberto Helder, por exemplo, aí já a conversa é outra. Mas leio Herberto como se ele fosse Homero. Acho, aliás, que é o Homero português. Eis um caso claro em que não procuro na voz de outrem a minha própria voz. Na poesia, de qualquer forma, isso não me acontece, pois não sou poeta. Na prosa a situação será outra. O enorme desânimo que me provoca a ficção portuguesa... não sei bem explicar.

JLBG - Presumo bem se afirmar que não é adepto da poesia dita confessional? Existe, para si, como contraponto à poesia épica, trágica ou mítica, uma ars poetica das coisas pequenas?

FL - A ars poetica das coisas pequenas é um dos meus maiores fascínios, pese embora o estigma de tradutor de Homero. Não sou daqueles que se põem a vociferar contra a poesia do centro comercial ou da taberna. Aliás, um poeta que me encanta é Manuel de Freitas (isto no que a tabernas diz respeito). Acho que a poesia deve mesmo ir às coisas ditas pequenas, que, no poema, acabam por ficar até bastante grandes. A poesia é, por excelência, a arte metamórfica.

JLBG - Falou em Rui Cóias, Manuel de Freitas, Herberto Helder... Que outros poetas portugueses ou estrangeiros contemporâneos lê regularmente? Ruy Belo? Sophia?

FL - Regularmente, Sophia e António Franco Alexandre. Depois de Camões, são os autores que mais amo da língua portuguesa. É o que se pode chamar paixão assolapada. Pelos três.


8 comentários:

Anónimo disse...

Fiquei surpreendido com a referência que O FL, nesta entrevista, me faz, a propósito da minha poesia. Gostei muito. E, já agora, aproveito para reiterar daqui, ao JLBG, as minhas felicitações pelo blog. Rui Coias

Anónimo disse...

Excelente entrevista! Parabéns a ambos!

Anónimo disse...

Caro JLBG: desculpe, seria possível conseguir um endereço de email ou contacto do Frederico Lourenço? Obrigado, Rui Coias

João Luís Barreto Guimarães disse...

Rui

Contacte-me para joaoluisguimaraes@mail.telepac.pt

JLBG

Anónimo disse...

parabéns pelo blog e pela deliciosa entrevista com FL.

voltarei, com certeza.

Anónimo disse...

sempre magnífic. parabens, frederico lourenço!

Anónimo disse...

o sempre soberbo FL!!! Parebéns e ao mesmo tempo obrigada pela entrevista.

daniel costa-lourenço disse...

este senhor é património nacional!

daniel costa-lourenço
http://strawsea.blogspot.com