domingo, janeiro 01, 2006

Ainda sobre ironia


A ironia é uma excelente arma. Quando não temos mais nenhum sabre à mão com que esgrimir o nosso ponto de vista, we’ll always have irony.

A ironia está um passo à frente do humor e um passo atrás do sarcasmo. Ali no meio, com conta, peso e medida. Representa um equilíbrio. Não quer isto dizer que, por vezes, não seja necessário recorrer ao sarcasmo – os tempos não vão, devo escrever, para subentendidos. Mas a ironia é fina, a ironia é elegante. A ironia é uma menina. O seu efeito é sempre surpreendente perante a percepção de que há uma incongruência aguda, uma discrepância óbvia, entre aquilo que se percebe e aquilo que foi dito.

A ironia verbal, por exemplo, vive de um claro contraste entre palavra e sentido. É óbvio que o narrador do poema de Charles Simic que aqui deixei há uns dias atrás, não pretende verdadeiramente que o destinatário se crucifixe. Só que para o convencer a não cometer essa loucura, aparenta colocar-se do lado dele como se concordasse com o acto, nunca contestando a intenção em si, antes fazendo-o aperceber-se da dificuldade do projecto – não contra a ideia em si, repito – mas pelo incómodo e impraticabilidade de tal tarefa. É um pouco como reduzir ao absurdo. A ironia e o absurdo sempre se entenderam muito bem. A propósito, hei-de trazer aqui alguns textos de poetas de leste, nomeadamente de Daniil Harms (1905-1941).

Mas ocorreu-me entretanto este poema de Alexandre O’Neill (1924-1986), que por uma via semelhante propõe qualquer coisa de parecido:


BECO DA MAL-AMADA (1960)

Se acha que a vida não é boa
utilize gás da companhia
o combustível de Lisboa.


O'Neill sempre foi excepcional em "versos publicitários". Aqui, sob a forma de um conselho amigo – que induz o destinatário a usar gás, ainda por cima da melhor qualidade, para melhorar o seu conforto pessoal, - o narrador pretende dizer exactamente o contrário daquilo que parece estar sugerindo. Não que Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), entre outros, não tivesse procurado esse tipo de conforto definitivo – no caso com estricnina, num quarto do Hotel de Nice, à Praça Pigalle, em Paris – mas numa visão menos dramática, este extraordinário poema não deixa de ser, embora às avessas, um pequeno hino à vida.

A ironia dramática, por outro lado, muito usada na ficção, no cinema e no teatro, joga-se entre a visão limitada que a personagem tem do episódio em questão, em contraste com a percepção total que o leitor/espectador já tem desse mesmo episódio. Um exemplo muito breve pode ser o que se retira deste clássico de Sarah Cleghorn (1876-1959), entre o que poderia ser a visão limitada das crianças e a que já é a nossa, ao lermos a cena de fora:


THE GOLF LINKS (1917)

The golf links lie so near the mill
That almost every day
The labouring children can look out
And see the men at play.


OS CAMPOS DE GOLFE

O moinho está tão rente ao golfe
Que as crianças, ao trabalhar,
De cada vez que olham para fora
Podem ver os homens a jogar.


Porque é que este poema é irónico? Porque nenhum verso nos impõe – pelo menos directamente – que o que se espera é que os homens trabalhem e as crianças brinquem. Pelo contrário: constrói um efeito de ironia dramática – uma incongruência entre aquilo que esperaríamos que acontecesse e o que acontece – para passar a sua mensagem.

Finalmente, há ainda a ironia cósmica, também chamada ironia de destino ou ironia fatal. No poema de Thomas Hardy (1840-1925) acerca da construção, viagem e naufrágio do Titanic, The Convergence of The Twain, a estrofe VIII é um belo exemplo desse tipo de ironia. Roubei este poema a um livro que quero vivamente recomendar (Scanning The Century, The Penguin Book of the Twentieth Century in Poetry, editado por Peter Forbes, em 2000). Está lá o nosso Fernando, na voz de Álvaro de Campos. É muito fácil de adquirir pela web. Eis a dita estrofe:


VIII

And as the smart ship grew
In stature, grace, and hue,
In shadowly silent distance grew the Iceberg too


VIII

E enquanto o astuto navio subia
Em estatura, cor e harmonia,
À sombra na silenciosa distância também o Iceberg crescia


E essa é que é a grande ironia. Um bom 2006!


4 comentários:

Rui Manuel Amaral disse...

Excelente, João.

Anónimo disse...

"Hablo mucho de mí porque soy el hombre que tengo más a mano"
Miguel de Unamuno (1864-1936)

...de facto podia ter escrito outra coisa mas ando a estudar castelhano.

Gostei muito.

Xico

I disse...

Gostei muito e aprendi muito.

Ruy Ventura disse...

Tenho gostado do teu novo espaço. Parabéns!