
Ao contrário de Pessoa, porém, – cujo baú parece não ter fundo, – é praticamente impossível aparecerem novos poemas do autodidacta da Rua dos Fanqueiros, porque outros textos que o "nosso Baudelaire" possa eventualmente ter escrito, ou ficaram esquecidos em qualquer folha de imprensa, ou foram apagados pelas chamas do incêndio de Linda-a-Pastora. Não parece ser esse o caso de Cesário Verde – Obra Poética e Epistolografia, de Ângela Marques (Lello Editores, 1999), onde se dá à estampa um poema inédito intitulado Loira (de 1878), acompanhado da seguinte nota de rodapé:
“Teve a rara felicidade de encontrar uma poesia de Cesário Verde, inteiramente desconhecida, o Sr. José do Nascimento Monteiro de Guimarães no álbum de uma senhora cujo nome não pode revelar o generoso bom gosto de a comunicar ao Dia, que a inseriu em seu número de 19 de Setembro de 1910, onde fomos buscar esses preciosos versos:”
LOIRA (grafia de época, itálicos meus)
Eu descia o Chiado lentamente
Parando junto as montras dos livreiros,
Quando passaste ironica e insolente
Mal poisando no chão os pés ligeiros.
O céu nublado ameaçava chuva.
Sahia gente fina de uma egreja;
Destacavam no traje de viuva
Teus cabelos de um loiro de cerveja.
E a mim, um desgraçado a quem seduzem
Comparações extranhas, sem razão,
Lembrou-me esse contraste o que produzem
Os galões sobre o panno de um caixão.
Eu buscava uma rima bem intensa
Para findar uns versos com amor;
Olhaste-me com cega indiferença
Através do lorgnon provocador.
Detinham-se a medir a tua elegância
Os dandies aprumo e galhardia;
Segui-te humildemente e a distância,
Não fosses suspeitar que te seguia.
E pensava de longe, triste e pobre
(Desciam pelas ruas umas varinas)
Como podias conservar-te sobre
O salto exagerado das botinas.
Havia pela rua uns charcos d’água
E tu, sempre febril, sempre inquieta,
Ergueste um pouco a saia sobre a anagoa
De um tecido ligeiro e violeta.
Adoravel! Na idea de que agora
A branda anagoa a levantasse o vento
Descobrindo uma curva seductora
Cada vez caminhava mais attento
Mas súbito parei, sentindo bem
Ser loucura seguir-te com empenho.
A ti que és nobre e rica, que és alguém
Eu que de nada valha e nada tenho.
Correm-me pelo corpo um calafrio,
E tive para o teu perfil ligeiro
Esse olhar resignado do vadio
Que fita a exposição de um confeteiro.
Vi perder-se na turba que passava
O teu cabelo d’oiro que faz mal.
Não achei essa rima que buscava
Mas compuz este quadro natural.
Ora, a curiosidade deste poema reside no facto de se tratar de um FALSO Cesário. Como refere uma nota à edição, “Este poema foi encontrado por Jorge de Sena, num Almanach de Lembranças Luso-Brasileiro, no Brasil, e posteriormente Joel Serrão pesquisou a sua autenticidade, tendo concluído que se tratava de um apócrifo e escrito pelo Dr. João de Meira, especialista em imitar versos das nossas maiores individualidades”. De facto, o episódio que o poema narra é demasiado coincidente com a leitura temática que fazemos da obra do poeta para poder ser expontâneo, – realismo, visão de artista, divisão social em classes, a mulher como deusa inatingível, – inclusive misturando aspectos de poemas de diferentes épocas - daquela que Silva Pinto chamou a Crise Romanesca, com os ditos Naturais, - desde a “Milady” de Deslumbramentos, à A Débil (onde inclusive se repete a expressão “Adorável!” no inicio de uma estrofe). No poema Loira vamos então encontrar a “actrizita” de Cristalizações, - os “charcos d’água” de um poema são os “lamaçais” do outro, os “pés ligeiros” aqui são os “pezinhos rápidos” além.
O vocábulo do verso 18 de Loira - "dandies" - é talvez a pista mais denunciadora. Mas esteve-se perto, muito perto, do logro perfeito, tivesse o “falsário” seguido à risca esta máxima da poesia: “Show. Don’t tell.”
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