quinta-feira, setembro 29, 2022

JOSÉ GARDEAZABAL


PENÉLOPE ESTÁ DE PARTIDA

José Gardeazabal

Relógio de Água, Abril de 2022

64 páginas


A história é de todos conhecida, pela Odisseia de Homero: Penélope aguarda há dez anos pelo regresso de Ulisses com quem havia casado depois de este ter vencido o seu pai, numa competitiva disputa. Constatando que o genro tarda em regressar de Troia, Icário incita agora a filha a aceitar a corte de uma longa fila de pretendentes, o que Penélope faz, contrariada, não sem antes estabelecer como condição não escolher noivo sem que termine o sudário que começou a tecer para Laerte, o pai do marido. É uma serva quem põe a nu que Penélope desfaz à noite, os avanços que tece durante o dia.

A provocação de José Gardeazabal vai explícita desde o título: a mãe de Telémaco está de partida. A surpresa é para a poesia o que o suspense é para a ficção – força de propulsão, energia – e a primeira surpresa deste livro é-nos desde logo oferecida pelo título: a mulher de Ulisses não vai mais ficar à espera dele e vai partir.

De surpresa em surpresa, o autor proporciona-nos um monólogo dramático de 41 poemas, não na voz de Ulisses como o género do autor poderia fazer antever, mas na de Penélope. É uma voz feminina quem fala. Enquanto criador, é todo um desafio o que o poeta se coloca a si próprio. Por várias vezes me questionei, ao avançar na leitura, como iria o poeta aguentar o momentum do desafio a que se propôs e a verdade é que o consegue, desde logo pelo exercício da ironia cósmica presente na escolha do tema, que resulta do facto de o leitor conhecer a história de fundo e umas vezes a ver corroborada pela expectativa que tem dos factos aludidos, outras a ver defraudada na antecipação que faz dos mesmos. Um jogo muito bem urdido.

Penélope, portanto, decide partir. Por saturação, por fastio, por autonomia, por madurez, por desapego, por cansaço, por decepção, por ciúme, por incerteza, por anseio, por menosprezo, por marasmo. Ou por todas essas razões: cedo o leitor se apercebe de que a voz que fala não é apenas a da mulher de Ulisses mas a da mulher anónima, da cabeleireira, da porteira e também talvez mais significativamente, a de Virginia Wolf, Susan Sontag, Golgona Angel, Gertrude Stein e a de muitas outras mulheres que surgem mais tarde explicitamente nomeadas no poema da página 40. Devo confessar que teria preferido que esse poema não tivesse sido incluído no livro, mantendo-se dessa forma implícito o jogo meta-literário para ir sendo desvelado se não numa primeira leitura, pelo conhecimento literário acumulado de cada leitor, ao deparar-se com essas autoras em ulteriores leituras. A poesia não tem de ser pedagógica e um livro como este tem, por si só capacidade de durar, também pelos extratos de que é feito proporcionando sucessivas descobertas a cada releitura. Há que confiar na sagacidade do leitor. Como também teria preferido, confesso ver omitido um ou outro texto (pág. 37, pág. 43) onde o tom altissonante do manifesto feminino é mais explícito, poemas esses que é possível que encerrem uma visão mais masculina do que se esperaria do tema.

Mas esta nota em nada retira valor à excelência da ideia que o livro encerra, à inventividade e qualidade do verso ao longo da página ou ao brilhantismo do final: se é verdade que Ulisses não pôde convidar Penélope para o acompanhar a Troia – porque seria uma viagem agitada em tempos de guerra, aceita-se isso, sim – nada obsta que agora, em tempos de paz, o guerreiro não possa aceitar o desafio que a mãe de Telémaco lhe deixa. A história entre os dois não tem de terminar apenas porque Penélope se cansou de esperar em Ítaca.


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