quarta-feira, maio 24, 2023

SALVADOR SANTOS


SELVAGEM

Salvador Santos

D. Quixote, Junho de 2021

96 páginas

 

Pela badana do livro ficamos a saber que Salvador Santos nasceu em Chaves em 1979, e que frequentou o curso de Estudos Portugueses da Universidade do Algarve, região onde vive desde os quatro anos. Selvagem, livro de poemas dividido em quatro partes é a primeira obra de sua autoria.

 

A primeira parte, que me maravilhou, dedica-se ao diagnóstico do lugar. Os poemas lêem-se sofregamente como se os títulos que os encimam não constituíssem uma divisão. A experiência de leitura é tematicamente próxima da de um romance de John Steinbeck (ou de William Faulkner, por exemplo), transmitindo um olhar realista, poético, maduro mas também terno e afável sobre as coisas – e os homens –, recuperando dos lugares o que ainda resiste, destacando-o do que já é destruição. Ruínas e pessoas. Casas e pescadores. Trata-se, na essência, de uma visão crítica de quem tendo nascido a Norte, pertence desde cedo ao lugar sobre o qual fala, o Algarve, e o vê avassalado de variados modos: agudamente pelos “turistas a arrecadar o verão” e cronicamente por “funcionários municipais que foram presos por corrupção”.

 

A tudo o poeta assiste da “janela repetida” do seu prédio, no “bairro que se acumula”, escutando as aves, sim, mas sentindo-se “no avesso da sua canção”. Vê e regista mas não julga, limitando-se a dar testemunho das marcas do, assim dito, progresso bem como dos traços de miséria com a qual aquele se cruza; por um lado o submundo da “electricidade desviada a cruzar-se em novelo sobre os telhados de chapa”, por outro, o “ócio das praias” num cosmos hiper-realista de “velhos pescadores”, onde as sombras do passado histórico também comparecem como por exemplo no poema “Mercado”, onde se alude à “alfândega onde se comerciavam homens” (“Em Lagos, só a memória corrompe a brancura de tudo.”). Adiante, na terceira parte, Salvador Santos escreverá a “Canção dos Brancos Negros”, uma versão contemporânea do mesmo tema, demonstrando como, numa mão-cheia de séculos, pouco mudou do essencial.

 

O autor pratica preferencialmente o poema longo, que melhor serve o seu ímpeto descritivo, de verso livre, com belas imagens que surpreendem pela precisão (“Os barcos de madeira que se afundam nos sapais poderiam ser o peito descarnado dos pescadores. Vértebras, esterno, costelas.”), transportando-nos mentalmente para uma geografia litoral de baldios e abandono, à qual a civilização conquista espaço como erva daninha – vieram-me à memória os longos poemas sobre pescadores que Amadeu Baptista publicou na revista Hífen, nos anos 80. Porque é sempre inconformado o olhar: “O que sobra dos dias é o desconforto de não me apetecer coisa / que se conheça nem que se saiba.”

 

A mesma inquietação irrompe também – clara, lúcida – noutros poemas onde se fala de imobilismo, tédio, do vazio das casas, da ausência de crianças, do contraste entre os que ficam e os que optam por partir (cf. “Arqueologia”: “Não temos outra forma de estar aqui (...). Não temos outra utilidade para estas tardes”) porque “Há muito que o nosso ofício é enterrar este lugar.” E presente-se, ciciante, a difícil decisão de quanto investir, quanto se envolver, em que medida entregar o coração.

 

Nas restantes partes do livro, a voz torna-se ainda mais pessoal (“tudo isto me pesa como uma subida íngreme”). Na terceira parte, por exemplo, abordam-se temas da actualidade, em poemas que pela falta de distância histórica são sempre mais difíceis de escrever e com os quais é arriscado tentar a síntese. Na segunda parte, os poemas tendem a ser mais curtos, e são inúmeros os versos que surpreendem por estarmos perante uma obra de estreia. Muito belo o poema “Pele”, onde se escreve acerca de um casaco que o autor herdou após a morte de um amigo. O tom geral é o de tristeza e ennui (“somos uma hospedaria de tédio”). É agora do Algarve humano que se escreve. Em “Baldios”: “Trazemos os dias cinzentos e frios impressos na alma. (...) Nada ocupa este vazio de não nos sentirmos realizados”. Na quarta parte, por fim, em “Outra voz” (“Quem me fala desses corpos sem rosto?”), num tom descritivo e resignado, a voz poética é de novo o espelho desse mundo a Sul abordado no início, e a voz é credível porque não tenta a nota esperança (“Mas qualquer desses sentidos seria tão falso / como a transpiração cega das estradas”).


As coisas são o que são. O que faz deste livro uma boa surpresa e do poeta uma boa descoberta; um jovem poeta cujas próximas obras vou fazer questão de acompanhar.

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