Maria
do Rosário Pedreira
Quetzal Editores, Abril 2022
96 páginas
A característica mais distintiva
deste livro é a sua estrutura. Se excluirmos o poema mote que abre o livro, este
é composto por sessenta poemas divididos por três partes de vinte poemas cada,
intituladas respectivamente “o meu corpo
humano”, “o teu corpo humano” e,
de novo, “o meu corpo humano”. Todos
os poemas têm como título uma expressão de algum modo relacionada com a
anatomia, seja através do seu nome científico, seja através de uma expressão de
uso mais oral. Os títulos não obrigam o poema a um desenvolvimento científico do
mesmo, antes funcionam como pretexto para um texto cujo fio condutor é uma unidade
ou uma identidade que é a do corpo humano.
A primeira parte ocupa-se do corpo humano do sujeito poético. Neste conjunto de poemas lutam entre si o “amor” e o “tempo”, eternos inimigos. São poemas o mais das vezes líricos que refletem a fugacidade do tempo, cada vez mais visível nos sinais de envelhecimento do corpo; subjaz a ideia de que cada instante é único e singular, devendo ser vivido com amor; fala-se do território secreto e exclusivo que o amor constitui; alude-se à morte metafórica que ocorre sem o amor e sem o corpo do objecto amado.
A terceira parte, para a qual propositadamente
salto dada a semelhança do título com a primeira, diz também respeito ao corpo
do sujeito lírico, pese embora o assunto dos poemas se foque menos no tempo e
nos aspectos físicos do corpo, do que no lado mental da existência. Não o da
doença psiquiátrica clássica mas o do episódio de matiz psicológica, esse que
atravessa a vida mental e amorosa da persona
lírica que nestes textos fala. Aqui, neste outro campo de batalha, travam-se de
razões “alegrias” e “tristezas”, luta-se pelo verdadeiro amor. Estes são poemas
informados por adversidades e incómodos, sombras e pesadelos, maledicências e
inimizades, segredos e ofensas, discussões e diferenças, feridas de alma ou de
alegria.
Na segunda parte, o corpo humano em
questão é o corpo dos outros, e aqui lutam entre si a “indiferença” e a
“empatia”. Os poemas deste conjunto podem ser lidos como um retrato sociológico
das últimas décadas, e das consequências da crise social pré- e pós-pandemia, sendo
uma extensa metáfora do Mundo contemporâneo, da ausência de compaixão e empatia. Nesse sentido, os títulos assumem a voz (e a vez) de
sinédoques de um quadro social contemporâneo mais vasto; as partes da anatomia
estão por aspectos da vida das personagens a quem o Mundo indiferente falhou:
as “costas” estão pela solidão da viúva;
o “pulso” está pelo acto do suicida; metonímias,
portanto: os “pulmões” estão pela tragédia dos refugiados; o “útero” está pela gravidez
de risco; a “perna” está pelo doente com gangrena; os “calos” estão pelo trabalho precário do emigrante de Leste; o “nariz” está pelas
vítimas dos incêndios; a “cabeça”
está” pelas vítimas das guerras.
A parte pelo todo, portanto. E um
regresso feliz à poesia de Maria Rosário Pedreira.
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