INTRODUÇÃO À PINTURA RUPESTRE
José Tolentino Mendonça
Assírio & Alvim, Outubro 2021
64 páginas
É sempre com redobrado interesse que leio cada novo livro escrito pelos poetas da minha geração, não apenas pelos textos em si, que raramente desiludem, mas pela natural curiosidade de tentar perceber o que acrescentam ao conjunto da obra poética de cada um deles: como a fazem evoluir.
O lugar que Introdução à Pintura Rupestre ocupa na obra de José Tolentino Mendonça é o de uma Memória dos primeiros anos da sua infância, escrita não em prosa, como é habitual nas Memórias, mas em poesia. Daí que abundem as referências geográficas angolanas, desde o Cine-Esplanada Flamingo aos mangues e à Baía do Lobito nestes 19 poemas de pulsão narrativa, arredondados para cima com um texto sobre uma das avós do autor, A quem deixas o teu oiro, que trata do papel da Oralidade na transmissão de histórias, entre gerações.
Uma vez que o programa do livro é a Memória enquanto arquivo, e as memórias que a preenchem (“subespaços que se acendem lentamente”), predomina nos poemas uma dicção concreta onde os referentes convocados materializam imagens quase fotográficas. No poema A primeira magia, por exemplo, o poeta espanta-se com as aptidões da Memória (“como foi ela capaz de fotografar / este estilhaço, estas formas que ardem / o ruído do sangue que nunca cessa / e a solidão dos ossos”), que são depois ilustradas por uma sequência de textos (aliás muitíssimo bem estruturada, esboçando uma narrativa), onde não faltam alusões à própria memória comum da poesia (e da filosofia) e onde se divisam referências a Herberto Hélder, Ruy Belo, William Carlos Williams e a uma mão cheia de filósofos.
“Uma parte da beleza do mundo permanece anónima”, escreve-se em A cesta, porém, o poeta trata de a colocar em evidência convocando momentos primaciais como a alegre azáfama das mulheres no fim da faina (“a mortal canção”) com uma alegria anterior à descoberta do fogo; o riso da abundância; a troca de bens que o mar proporciona aos pescadores (numa óbvia referência bíblica); a descoberta de um mundo singular de objectos (“provas milenárias de uma afinação”) e de animais do mar (“em profundidades / onde não existe / caçador nem presa”).
Mas também a família, fundadora de um “mundo que se começa a ouvir no
fundo da casa”, convocada por emoções onde predomina uma ternura tímida através
de versos de uma beleza suspensa; ou pelas botas gastas do “avô Matias /
caçador de baleias e ocioso tocador de bandolim (...) que jamais se saciaram de
paisagens”; pela (difícil) bicicleta do pai; pela miséria de uma “existência
selvagem e simples”, já que “as crianças que choram / duram mais que qualquer
época”); ou ainda pela Guerra colonial,
onde “Uma pessoa habitua-se facilmente / ao absurdo”); por alusões sociais
(“Nessa década dizia-se que o socialismo / se chegasse seria de bicicleta”); por
aventuras e histórias penosas ouvidas na infância como aquela que é narrada em Aconteceu no capim, poema admirável quer
pelo tema, quer pela gestão estrofe a estrofe, do suspense narrativo.
Lendo estes poemas com detalhe é difícil resistir à tentação de perguntar quantos dos episódios aqui lembrados foram fundadores da pessoa civil em que José Tolentino Mendonça se tornou: é também para isso que se leem Memórias. Provavelmente todos: a memória é também uma construção do passado (ideal?), tal como o poeta sugere num dos poemas (“A vida dos nossos avós é inventada por nós”), e nesse sentido, este belíssimo livro de poesia fica como um registo dos primeiros anos de José Tolentino Mendonça, passados quer nas ruas do Lobito, quer (numa certa ocasião) na brancura de um hospital por culpa de um “punho infeliz”, onde o poeta foi colecionando palavras “sem nenhum nexo”, como quem descobre o fogo da linguagem, riscando no branco das paredes as primeiras imagens poéticas.
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