quinta-feira, setembro 15, 2022

FILIPA LEAL

 


A RAPARIGA JÁ NÃO GOSTA DE BRINCAR

Filipa Leal

não (edições), Março 2022

72 páginas

 

É talvez o livro mais interessante que li dos escritos durante a pandemia. Ou deverei chamar-lhe objecto?

O que começou por ser uma colagem realizada pela autora por ocasião da jubilação de Perfecto E. Cuadrado da Cátedra de Filologia Galega e Portuguesa da Universidade das Ilhas Baleares, cedo deu origem a um conjunto de 27 colagens, feitas quase automaticamente durante a pandemia, no confinamento de Março de 2020.

Para uma doença absurda, um livro surreal. Durante várias semanas, Filipa Leal colou quase três dezenas de poemas através do recorte e composição de palavras (ou pequenas frases), sequencialmente, muito ao sabor do acaso – do desfolhar de revistas e jornais antigos em casa de cantautora Mafalda Veiga – um pouco ao sabor da razão. Como tantas vezes sucede com a leitura da poesia surrealista – ou da fruição da pintura abstracta, diria eu – o leitor não consegue ler os poemas sem resistir a procurar um sentido lógico nos versos, preenchendo as elipses, ziguezagueando pela sintaxe, confortando o irracional com o racional.

É interessante colocarmo-nos por instantes na cabeça da autora, questionando as suas escolhas, tentando reconstruir na aparente expressividade espontânea o que foi automatismo do que foi pensamento, ao folhear, recolher, recortar, construir numa tensão permanente entre o que a surpresa do achado traz e aquilo que o raciocínio completou – o acaso trazendo a matéria poética concreta sobre a forma de palavras recortadas, o raciocínio resistindo à tentação de alisar a estranheza da sintaxe: “(…) Imagine um edifício organizado à pressa / por mim a dar para o Douro / portas abertas ao pó em segurança / Cuidar mudos concertos de garagem / trabalhar livros e contradições / a imaginação sem arguidos // Corta // O inferno não gosta de casas”

Um outra dimensão deste objecto são as colagens, elas próprias, enquanto obras de arte, recortes de palavras com numerosas Fontes e cores de fundo, cuja composição em papel deu origem a harmoniosas peças gráficas e cromáticas reproduzidas nas páginas ímpares; nas páginas pares está impresso cada um dos poemas, transcrito sobre a forma de texto e já pontuado, podendo portanto cada texto ser lido das duas maneiras; no final do livro aparecem quatro colagens que utilizam recortes com palavras em língua espanhola e cinco em língua inglesa, estas últimas menos interessantes não por falta de labor da autora mas porque o surrealismo não é coisa para a língua inglesa.

Mas acontece sempre poesia nestas colagens onde reconhecemos alguns dos temas presentes na obra de Filipa Leal (a cidade, a solidão, a mulher, a família, a politica), tratados quase sempre num tom irónico e humorístico: “num país livre, conquistar onde sofrer’ / número crescente de vozes reclama espaço / afastam-se da casa e da vida. / quer dizer, do efeito bonito da família. / é tramada a noite da carne / de quem avança equipado / para a separação (…)”.

São pontuais as vezes em que os recortes se limitam a ilustrar a lógica; na quase totalidade dos poemas o tom é surreal ou absurdo, o que significa que a autora foi muito feliz na fuga ao consolo do verso, em benefício de uma tensão, um automatismo e fundamentalmente, uma estranheza que são apanágio do surrealismo: “No nosso país estão de novo a usar o sol”. Um livro para coleccionar.


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