sábado, junho 01, 2013

Notas sobre livros (12)

IMMANUEL KANT
Observações sobre o Sentimento do Belo e do Sublime seguido de Ensaio sobre as Doenças Mentais
(Betrachtungen über die Schönheit und Erhabenen e Versuch über die Krankheit des Kopfes, 1764)
Lisboa, Edições 70, 2012


por JOÃO PAULO SOUSA


Os dois ensaios que se reúnem neste pequeno volume não têm apenas em comum a data das respectivas edições inaugurais, mas resultaram ambos de uma dedicação kantiana à análise antropológica. No primeiro caso, esse trabalho foi feito com base nas duas categorias estéticas indicadas no título; no segundo, o filósofo procurou esboçar uma taxonomia da loucura, recorrendo a dois mecanismos – o princípio da progressividade e o da inversão – para explicar a formação das patologias mentais. A introdução clara e bem informada de Pedro Panarra, que também assina a tradução, prepara o leitor para o confronto com a estrutura e o ponto de vista dos dois textos kantianos, embora não o previna – nem é certo que devesse fazê-lo – para a curiosa amálgama entre observações luminosas e frases preconceituosas ou, pelo menos, inegavelmente datadas. Sirva de exemplo o primeiro ensaio, organizado em quatro capítulos, que conduzem o leitor de uma apresentação geral dos conceitos de belo e de sublime para a sua utilização como elementos distintivos do homem e da mulher ou dos caracteres nacionais; é aí, no uso das duas categorias estéticas como linhas decisivas de demarcação, que Kant parece cair nas armadilhas de um pensamento que tem tanto de fulgurante como, em alguns momentos, de profundamente banal. Observações como as que se seguem dificilmente poderiam merecer outros epítetos:


O estudo laborioso ou a reflexão penosa, ainda que uma mulher neles progrida longamente, estragam os méritos peculiares do seu sexo, e se a raridade desta condição a converte em objecto de fria admiração, ao mesmo tempo, debilita os encantos que lhe permitem exercer o seu ascendente sobre o sexo oposto. A uma mulher que tenha a cabeça atafulhada de grego (…) ou que sustente discussões fundamentadas acerca da mecânica (…), parece que apenas lhe falta uma boa barba, pois com ela o seu rosto talvez consiga expressar melhor a profundidade a que aspira. (p. 59)


Descontados estes sinais de um reaccionarismo que serve sobretudo para nos lembrar como nem os melhores espíritos de uma época conseguem ficar imunes às ideologias do seu tempo, o primeiro ensaio deste volume é extraordinariamente sagaz na composição de tipos sociais a partir das noções de belo e de sublime. No decurso da sua leitura, ocorreu-me frequentemente que as caracterizações definidas por Kant também se poderiam aplicar ao modo como os escritores se relacionam com a literatura. Tome-se, como ponto de partida deste raciocínio, a afirmação de que na «natureza humana nunca existem qualidades louváveis sem que existam ao mesmo tempo degenerações dessas qualidades» (p. 40). Desta ideia há-de resultar a definição do melancólico, não «assim chamado por, estando privado das alegrias de viver, se consumir numa taciturnidade sombria, mas porque quando os seus sentimentos se intensificam excedendo um certo limite, ou quando ganham uma direcção errada devido a certas causas, estes podem mais facilmente conduzir a este estado do que a qualquer outro» (p. 47). Na óptica de Kant, o «indivíduo de constituição melancólica preocupa-se pouco com os juízos alheios (…) e baseia-se unicamente na sua convicção»; se é verdade que «os motivos que o impelem a agir têm a natureza de princípios», não o é menos que a «sua firmeza não raro degenera em obstinação» (p. 48).

Eis aqui traçada uma curiosa linha de demarcação entre duas possibilidades de encarar a literatura por parte dos escritores (e não seria difícil pensar em casos concretos, nomeadamente de poetas portugueses contemporâneos), ainda que alguns não assumam a perspectiva que, na verdade, é a deles; refiro-me aos autores que recusam ceder a qualquer tipo de compromisso com o que consideram indigno de ser enquadrado na arte tão elevada que julgam compor e aos que aceitam (embora não o reconheçam) qualquer cedência desde que ela lhes garanta o destaque num palco onde acreditam poder brilhar por longo tempo. Os primeiros tendem a adoptar um tom colérico, próprio da degeneração do sublime detectada por Kant, tornam-se temíveis, pois a «ofensa e a injustiça suscitam nele[s] uma sede de vingança» (p. 49); quanto aos segundos, facilmente compostos a partir das características dos anteriores, que lhes são completamente opostas, nem à categoria do belo podem almejar, dado que se dispõem a acatar qualquer tipo de promiscuidade em que a sua suposta arte seja envolvida, desde que, por esse meio, obtenham as contrapartidas mediáticas a que tanto aspiram.

Noutro plano, contudo, deverá colocar-se o «indivíduo de temperamento sanguíneo», possuidor, segundo Kant, de «um sentimento predominante do belo», que poderíamos aqui apresentar, usando ainda as palavras do filósofo alemão, como um autor que «conhece mal a tranquilidade satisfeita» (p. 49).

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