terça-feira, março 12, 2013

VALERIO MAGRELLI

(este post é para a Margarida Ferra)

VALERIO MAGRELLI nasceu em Roma, em 1957. Os seus poemas são frequentemente construídos a partir de breves apontamentos cujo cerne é um, ou vários, achados formais o mais das vezes surpreendentes, que nos obrigam a rever a forma como olhamos as coisas. A Quetzal publicou o seu livro "A espinha do P", em 1993, inserido na colecção "Poetas em Mateus", revista e apresentada por Maria Carlos Loureiro, de onde foram colhidos, com a devida vénia, estes cinco poemas onde é notória a originalidade, a criatividade e a inovação deste extraordinário olhar poético italiano.



§


Desliza a caneta
para a virilha da página
e em silêncio se recolhe a escrita.
Esta folha tem os confins geométricos
de um estado africano, onde disponho
o alinhamento paralelo das dunas.
Agora desenho
enquanto conto o
que contando se perfila.
É como se uma nuvem
chegasse a ter
forma de nuvem.



§



Um ao pé do outro depois da refeição
estão os copos dos noivos, unidos
numa proximidade nupcial.
Por toda a parte, contagiando
roupas e objectos
o casal trai a sua passagem
e deixa atrás de si
coisas aos pares, binárias, tocando-se
entre si, testemunhos,
pares do mundo.



§



Imaginei muitas vezes que os olhares
sobrevivem ao acto de ver
como se fossem hastes,
trajectos medidos, lanças
numa batalha.
Penso então que dentro de uma sala
há pouco abandonada
esses traços devem ficar
por algum tempo suspensos e cruzados
no equilíbrio do seu desenho
intactos e sobrepostos como os paus
de mikado.



§



Se para te falar devo marcar um número
transformas-te em número,
dispões as linhas
na combinação a que respondes.
O três que se repete,
o nove em terceiro lugar,
indicam algo do teu rosto.
Quando te procuro
devo desenhar a tua imagem,
devo reproduzir os sete algarismos
análogos ao teu nome
até se entreabrir o cofre-
-forte da tua viva voz.

(...)


§



E se as voltas de fechadura
não acabassem nunca?
e se tivesse de ficar toda a vida
aqui fora, a dar voltas à chave?
Faço a cópia das minhas chaves
faço a cópia das minhas cópias
o que gasto para as multiplicar
serve para tirar a cada uma o seu valor
o meu Valério. No perfil dos versos
reproduzo o recorte
dentado das chaves.



§




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