LUÍS FILIPE CASTRO MENDES
Lendas da Índia
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2011
por JOÃO PAULO SOUSA
Encarar as lendas como «lembrança e memória dos bens e males passados», como o faz Luís Filipe Castro Mendes no texto introdutório do seu livro, é um modo de afirmar a importância fundamental da subjectividade na construção poética. Dir-se-á que nada de novo está contido em tal ideia, mas isso não é bem certo, se nos ativermos às várias tentativas, ao longo do século passado, de pôr em causa, contestar ou mesmo negar a afirmação individual da diferença enquanto efectivo processo de criação artística. Não se trata aqui, porém, de uma subjectividade sustentada a partir de um desejo de diferença absoluta; o autor de Lendas da Índia sabe – e mostra-nos isso em diversos momentos ao longo desta obra – que uma voz se edifica sobre os ecos das outras. A consciência do caminho a percorrer não o torna mais seguro do resultado nem o afasta do trajecto definido, mesmo que essa definição seja improvável. Exemplificativo do que acabei de referir é o poema «Com que voz?», que bem pode apresentar-se como uma nítida e rigorosa arte poética:
Essa voz que deixei perder
já não me procura;
e nada será jamais
tão simples e singular
como aquela voz modulada
e firme na sua insegurança,
tão indefesa como estar vivo.
Porque falo nisto agora?
Desista de me ler
quem busca um fio coerente,
uma afirmação rotunda
e concisa. Não tenho loja
com essa mercadoria.
Nem com mais nenhuma.
Procuro apenas o som nítido de uma voz,
entre todas as coisas que deixei perder.
Procuro. (p. 57)
Que o último verso se componha apenas do verbo – e nos mostre esse gesto, o de procurar, como independente do objecto que, em aparência, o justifica – serve para ressaltar a importância atribuída à incompletude e ao inacabamento, não como marcas do poema, mas como evidências que a consciência do poeta não ignora. A modulação da voz, que nunca cessa, resulta dos vários acrescentos que lhe vão sendo conferidos e das transformações ou metamorfoses a que procede. Assim, não surpreende que, ao longo deste livro, haja um diálogo regular e frutuoso com variadíssimos poetas, mais ou menos explicitado através de nomes ou de variações de versos. O propósito de Luís Filipe Castro Mendes não será apenas traçar um cânone literário ou reivindicar uma família poética – embora isso também aconteça –, mas sobretudo compor uma relação com o tempo e o espaço sustentada, em grande medida, no diálogo com a tradição. É, por exemplo, o que podemos encontrar quando o poeta, invocando Camões – figura tutelar desta obra –, escreve que a «memória nada é sem este puro imaginar: / transforma-se o amador no seu próprio vazio / junto da coisa amada» (p. 110), ou, num poema intitulado «Pessoana pobre», apresenta esta quadra:
Passado, terra estrangeira:
e o nosso em particular
é palavra derradeira,
não se pode articular. (p. 54)
Devo aqui precisar que não é sobre o passado que se estrutura o livro de Luís Filipe Castro Mendes, pois nele não se ignora que um poema – uma obra de arte – nunca é sobre o que quer que seja, nada reflecte nem expõe a não ser a si mesmo; seguindo a lição de Drummond, o autor de Lendas da Índia lembra-nos que os poemas «são acontecimentos» e que «onde de verdade ecoam é por dentro de nós», para depois clarificar, com notável rigor, a sua perspectiva acerca dos intervenientes no que poderíamos talvez designar como o processo de criação e recepção da poesia:
Por isso é acontecimento a poesia:
entre nós, o mundo que não nos vê
e alguém mais desprendido que nos lê. (p. 134)
Sem comentários:
Enviar um comentário