domingo, dezembro 16, 2012

NOTAS SOBRE LIVROS (6)

JORGE ROQUE
Canção da Vida
Lisboa, Averno, 2012



por JOÃO PAULO SOUSA



A difícil arte do poema em prosa, a que Baudelaire conferiu um cunho que ainda hoje tomamos como definitivo, deve uma parte decisiva da sua eficácia à contenção e à intensidade daí resultante. Ele distingue-se quase sempre por ser breve e por uma certa capacidade de transfigurar aquilo que, no próprio texto, parece funcionar como ponto de partida. Assim, o poema em prosa poderá confundir-se facilmente com um pequeno conto, sendo verdade que, em muitos casos, a sua apresentação num conjunto que se denomine poético ou narrativo pode alterar a sua catalogação. No volume Canção da Vida, de Jorge Roque, é logo no primeiro texto que compreendemos de que lado pretende o autor que se situe a designação, não só porque o seu término aponta explicitamente nesse sentido, mas sobretudo porque ele se serve habilmente de um olhar demasiado próximo de um gesto violento sobre o corpo humano para ensaiar uma nova perspectiva acerca do sucedido e nos dizer que é esse o procedimento estrutural adequado à construção de um poema:


Venha pois o raciocínio, a acção consequente: avaliar o golpe, lavar, desinfectar, fazer um penso em compressão para estancar a hemorragia. Iniciar o lento trabalho da aceitação. Delimitar, conformar, deslocar para outro ângulo de onde descobrir novo olhar. O poema, por exemplo. (p. 9)


Se a construção poética é esse desvio do olhar que torna novo aquilo que já conhecíamos (ou que supúnhamos conhecer), percebe-se depressa que será preciso articular uma visão familiar com a estranheza resultante de uma nova perspectiva, seja ela um enquadramento distinto ou uma aproximação ou um afastamento tão excessivos que impliquem uma distorção da imagem. Há, em todo o caso, um fundo que persiste ao longo destes poemas em prosa, um fundo que se vai impondo de um modo simultaneamente progressivo e seguro, um fundo escuro, que justifica o título da obra ao acentuar, por contraste, o brilho das cenas ou das imagens que o livro apresenta: a morte. Não se chega lá de imediato, embora a primeira das quatro secções já se intitule «Um corpo que morre», e nem sempre se chega lá do modo imprevisto e rigoroso que contribui para a densificação do poema em prosa, mas há momentos em que todo o convencionalismo é sacudido com eficácia e o texto adquire quase o ímpeto de um grito. Entende-se bem essa dimensão expressionista numa obra atravessada pela angústia existencial, pelo abandono do divino e pelo corajoso confronto com a evidência da própria morte, como acontece no intenso poema final, que força o leitor a fechar o livro com a inquietação que toda a arte digna desse nome consegue provocar:



Ficam com o rosto pálido, emaciado, nariz estreito, afilado, e na pele o cheiro que alguém me disse a terra e eu entendi. Cheiro a corpo que não renasce, matéria que se decompõe, deteriora, e despe com crueza o homem cada vez mais nu. Um destes dias serei eu, reconhecer-me-ei no espelho, e saberei que chegou a minha vez. (p. 38)




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