quarta-feira, setembro 19, 2012

NOTAS SOBRE LIVROS (1)

JOSÉ MIGUEL SILVA
SERÉM, 24 DE MARÇO
Lisboa, Averno, 2011


por JOÃO PAULO SOUSA


Num conjunto dividido em duas partes que se subdividem rigorosamente em nove poemas cada uma, confonta-se o leitor com um irónico tratado sobre a felicidade, sustentado na defesa de um tempo e de um lugar. Expressos os dois no título da obra, e pela ordem com que habitualmente se apresentam em documentos oficiais, o tempo e o lugar invertem, porém, a sua posição quando se nos dão a conhecer. Assim, começando pela data, o sujeito poético parece atribuí-la a um acontecimento decisivo na sua existência, que seria a chegada do destinatário à sua vida, o que lhe permite dizer:

Eu não tinha muita coisa e hoje tenho
a soma dos teus passos quando desces
a correr os nossos treze degraus e
me prometes: até logo . […]
(p. 10)

Sirvam estes versos iniciais do segundo poema do livro para nos apercebermos de imediato como o poeta recorta o verso de forma hábil, multiplicando os efeitos de sentido e criando no leitor expectativas que são depois encaminhadas em diferentes direcções: uma alteração de circunstâncias – uma espécie de enriquecimento, por assim dizer – está enunciada logo no primeiro verso, mas só com o segundo é que compreendemos que todo o valor reside no «tu» a quem ele se dirige; por outro lado, este destinatário só aparece de forma indirecta, não por meio dos seus passos, mas da contagem dos mesmos, permitindo que o leitor descubra assim, sem explicações ou declarações, e apenas através do registo dos seus sinais, a tensão inerente ao afastamento das duas personagens do poema.

De resto, talvez se possa mesmo afirmar que esta é uma poesia de sinais, ainda que a sua interpretação seja sempre potenciada com o grau de distanciamento imperioso a quem atravessou a modernidade e não se deixa enganar por qualquer tipo de ingenuidade rasteira. Repare-se, por exemplo, na primeira estrofe do poema «Elogio da cal apagada», que serve a José Miguel Silva para mostrar como a arte é um processo de construção sobre ruínas:

Que posso eu dizer da cal
que não tenham antes dito os aprendizes
de Eugénio de Andrade?
(p. 31)

Tal constatação não serve, no entanto, para que o poeta se intimide e se deixe reconduzir ao silêncio. Fala dele, é certo, e quase sugerindo tratar-se de uma hipótese de felicidade, mas depressa se afasta dessa suposta crença no isolamento ou no alheamento como salutar condição humana ao encerrar o último poema, já ironicamente intitulado «Sinopse», que, com a devida vénia, aqui reproduzo na íntegra, para que se compreenda como o constraste entre o «eu» e os «outros» adquire uma dimensão especular, com as duas partes do texto a reflectirem-se muito significativamente uma na outra:

Nem martelo nem bigorna, como sempre
desejei: as tardes à janela, sem vizinhos nem
ardis, a injustiça reduzida ao mecanismo
natural da bicharada, o lavradio do amor
a tempo inteiro.
                          Só me falta, para tudo
proteger em cobardia, uma campânula
de cego na cabeça, aprender a fechar olhos
e ouvidos ao avanço hertziano da desdita.
Então serei feliz e integral como um cadáver.
(p. 36)

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