TADEUSZ RÓŻEWICZ nasceu em Radomsko, Polónia, em 1921. Escreveu prosa, teatro e poesia. Combateu a Alemanha nazi entre 1943 e 1944. No final da guerra, estudou na Faculdade de História de Arte, em Cracóvia. Segundo Fernando Presa González, seu tradutor do polaco para castelhano, Różewicz abriu caminho a “uma poesia quase desprovida de artifícios estéticos, carente de rima, de pontuação, muito pouco dada à metáfora e muito a favor de uma linguagem directa e da imagem real. (...) Marcado pela guerra, o cepticismo de Różewicz alcança uma cota tal que chega a afastar-se de valores muito enraizados na sociedade polaca como a religiosidade e o patriotismo. (...) A mentira abarca tudo, inclusive ele mesmo, que se sabe transformado, filho da guerra e do ódio, produto de um tempo sob o signo da ira e da morte.” Os nove poemas que se seguem foram por mim traduzidos do castelhano, a partir da antologia “Poesia abierta (1944-2003)", publicada em Barcelona pela editora La Poesia, señor hidalgo, com um excelente prefácio de Fernando Presa González.
NOMEIO COM O SILÊNCIO
Posso nomear o inominável com a palavra
posso nomear a pátria
o amor o oiro uma rosa
posso gritar ou calar
posso enunciar as cores
os mares as ilhas os pássaros os frutos.
Digo o nome de minha amada
à pátria chamo-a pelo seu nome
repito duas vezes uma palavra
chamo o inominável com o silencio.
§
O AUTOCARRO NEGRO
Este autocarro negro
é distinto dessa manada de autocarros vermelhos
que fervem como uma panela
no fogo
no seu interior um passageiro
paciente e longitudinal
com casaco de madeira
fechado até ao último prego
descerá na última paragem
Ninguém se mata
por subir a este autocarro
muito pelo contrário
Pintemos todos os autocarros
de negro com uma linha branca
Sua aparência melancólica
incitara as pessoas
a uma reciproca benevolência
quando subam
e quando desçam
1954
§
NÃO ME ATREVO
Assolado
pelo riso e pelas palavras
golpeado
pelos pequenos sentimentos e pelas coisas insignificantes
por meio amor
e meio ódio
aí onde há que gritar
falo com um sussurro
Conheceis esta voz
quebra-se na garganta seca
como uma cana
os velhos poemas caem de mim
todavia não me atrevo a sonhar com os novos
com a nova poesia
a qual
pode pressentir-se
num momento feliz
§
QUEIMA DE POEMAS
Conto-vos uma história
não muito curiosa
a queima de poemas
deve fazer-se em silêncio
é uma cerimónia
desprovida de gestos
patéticos
a queima de poemas deve fazer-se
no meio de uma decoração comum
uma mesa três cadeiras
um armário com livros
arde o papel
dança a chama
o fumo sobe para cima
Quando nasceram as palavras
gritou
agora cala
§
JOGOS
E que importa que amanhã
seja o fim do mundo
Numa povoação eslovaca
aos pés de uma grande nuvem
há um homenzito
com bigodes amarelos
que golpeia um tambor
Por um só ouvido
escuta-o um rapazito
que vai de bicicleta
pelo outro ouvido rosa
um vale entre montanhas azuis
uma rapariga vê-se
entre os espelhos
colocados entre o céu e a terra
um homem moderado e uma mulher
com seriedade e precisão
criam um novo homem
é um professor sábio
que agora se assemelha
a um pequeno cavalo
pese embora no embrião junto à cabeça
e às extremidades se possam descobrir:
os óculos o guarda-chuva o título
a cátedra e a visão do mundo.
Os que melhor se portam são os loucos
constroem casitas para os pássaros
educam os filhos
instalam viveiros
aprendem gramática
no entanto
as pessoas normais
brincam com bombas de hidrogénio.
1957
§
ESTIVE A ESCREVER
Estive a escrever
um momento ou uma hora
sentia ira
mudo
sentei-me junto a mim
os olhos embaciaram-se-me de lágrimas
estava a escrever há muito tempo
de repente dei-me conta
de que não tenho a pena na mão
§
DESDE HÁ ALGUM TEMPO
Desde há alguns anos
que o processo da morte da poesia
se acelera
adverti
que os novos poemas
publicados em semanários
começam a decompor-se
ao cabo de duas ou três horas
os poetas mortos
vão-se rapidamente
os vivos
cospem
à pressa
novos livros
como se quisessem fechar o ralo
com papel
§
ENTRE MUITAS OCUPAÇÕES
Entre muitas ocupações
muito urgentes
esqueci-me
de que também há que
morrer
frívolo
abandonei esta obrigação
ou ocupei-me dela
superficialmente
a partir de amanhã
tudo mudará
começarei a morrer com esmero
de maneira sensata com optimismo
sem perda de tempo
§
CONTO SOBRE AS MULHERES VELHAS
Gosto das mulheres velhas
as mulheres feias
as más mulheres
são o sal da terra
não sentem aversão
pelo lixo humano
conhecem a outra face
de uma medalha
do amor
e da fé
vêm e vão
os ditadores endoidecem
têm as mãos manchadas
com sangue de seres humanos
as mulheres velhas levantam-se pela madrugada
compram carne fruta pão
limpam cozinham
permanecem na rua com os braços
cruzados calam
as mulheres velhas
são imortais
Hamlet agita-se na rede
Fausto faz um papel vil e ridículo
Raskólnikov golpeia com um machado
as mulheres velhas são
indestrutíveis
sorriem com indulgência
deus morre
as mulheres velhas levantam-se cada dia
pela madrugada compram pão vinho peixe
morre a civilização
as mulheres velhas levantam-se pela madrugada
abrem as janelas
retiram a sujidade
morre um homem
as mulheres velhas
levam os restos
enterram os mortos
plantam flores
nas tumbas
gosto de mulheres velhas
de mulheres feias
de más mulheres
crêem na vida eterna
são o sal da terra
o córtex de uma árvore
são os olhos submissos dos animais
vêem na sua justa medida
a cobardia e o heroísmo
a grandeza e a insignificância
como as exigências
de um dia quotidiano
seus filhos descobrem a América
caem nas Termópilas
morrem nas cruzes
conquistam o cosmos
as mulheres velhas saem de madrugada
para a cidade compram leite pão
carne condimentam a sopa
abrem as janelas
só os idiotas se riem
das mulheres velhas
das mulheres feias
das más mulheres
porque são mulheres belas
mulheres boas
mulheres velhas
são um ovo
são um segredo
sem segredos
são uma bola que roda
as mulheres velhas
são múmias
dos gatos sagrados
são pequenos
murchos
secos
frutos mananciais
ou gordurosos
budas ovais
quando morrem
brota do olho
uma lágrima
que se une na boca
com o sorriso
de uma mulher jovem
1963
Outro poema de Tadeusz Różewicz no Poesia Ilimitada.
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