quarta-feira, março 24, 2010

PEDRO EIRAS acerca de... (bom, o melhor mesmo é lerem!)

«Hesitei muito. Voltei a abrir os livros, em torno, sublinhados, anotados. Alguns, quase os vou sabendo de cor. Poderia repetir: Cesário, Pessanha, Herberto. Como de outras vezes. Ou Pero Meogo, Sá-Carneiro, Luiza, Franco Alexandre. Mas os dedos - eles sabem destas coisas - procuraram no escuro este exorcismo nocturno que talvez já ninguém saiba. E assim foi: copiei a reza obscura e magnífica. Não sei dizer mais nada sobre ela. A não ser - que entendo assim a poesia: tão próxima do medo.»


REZA DE BENZEDEIRAS NO NORTE DE PORTUGAL

Fulano, estás enfeitiçado,
inchado, virado ou mal-olhado?
Eu te desenfeitiço, desligo, talho
e desenlaço.
(Fazendo uma cruz no ar)
Eu talho o sopro do vento:
o ar de cima e o ar de baixo;
o ar do norte e o ar do sul;
o sopro do vento e o da chuva,
ar de cristão, de judeu ou de pagão.
Eu talho tudo.
Onde quer que sejas,
o mal da inveja,
ou a água do ventre.
Eu te talho e te degrado
para as ondas do Mar Coalhado
onde não canta galinha nem galo.
Para que o corpo
torne ao estado
como foi nascido e gerado
pelo poder de Deus e da Virgem Maria.



Pedro Eiras
nasceu em 1975. É Professor de Literatura Portuguesa na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Desde 2001, publicou obras de ficção (como Estiletes ou Os Três Desejos de Octávio C.), teatro (Um Forte Cheiro a Maçã, As Sombras, Um Punhado de Terra), poesia (Arrastar Tinta), crónica (Boomerang, Substâncias Perigosas), e ensaio (A Moral do Vento, A Lenta Volúpia de Cair, Tentações). Com o ensaio Esquecer Fausto, ganhou o Prémio PEN Clube Português de Ensaio em 2006. Tem peças de teatro traduzidas, publicadas, encenadas em diversos países: Portugal, França, Grécia, Eslováquia, Roménia, Brasil.


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