domingo, junho 07, 2009

MANUEL ANTÓNIO PINA


Ontem, 6 de Junho, na Feira do Livro do Porto, Manuel António Pina apresentou o meu último livro "A Parte pelo Todo", no âmbito de uma mesa submetida ao tema "Aquele que escreve é também eternamente escrito". O que se segue é o texto que li na ocasião e que pretendo partilhar com os leitores do Poesia Ilimitada sobre a poesia de Manuel António Pina.



ANÕES AOS OMBROS DE GIGANTES


dedicado a Manuel António Pina, poeta gigante


O tema que nos é proposto esta noite (“Aquele Que Escreve É Também Eternamente Escrito”), é particularmente pertinente quando falamos da obra de Manuel António Pina, não apenas porque são seus os versos “aquele que escreve / é também eternamente escrito” ou numa outra variante “Também aquele que escreve / é escrito para sempre”, mas porque na sua poesia - e na sua técnica de escrita, se posso usar este termo, – é perceptível a questão das famílias literárias, ou, usando uma expressão mais visceral, da consanguinidade literária.

Manuel António Pina (jornalista, poeta, cronista, ficcionista, dramaturgo, escritor de literatura infantil), é um daqueles escritores que já não se apresenta em colóquios como este pelos livros que escreveu, mas pelos prémios que recebeu: o Prémio da Critica da Associação Internacional de Críticos Literários, por “Atropelamento e Fuga” (de 2001), os Prémios da Associação Portuguesa de Escritores A.P.E. e da Fundação Luís Miguel Nava, pela obra “Os Livros” (de 2003), prémios que destaco de entre outros porque dizem respeito a duas obras de extraordinária maturidade que consagraram MAP como um dos maiores poetas portugueses actualmente a escrever e a editar.

Após uma fase inicial, a partir de 1965-1966 (sob a pena de falsos heterónimos como Billy The Kid de Mota de Pina ou Clóvis da Silva, ou Slim da Silva que “Aos 50 anos descobriu a irresistível vocação de falar sobre o que não conhecia”), onde a sua obra revisita o surrealismo, a escrita Beat, um certo niilismo, sendo possível encontrar versos directamente colhidos, como escreveu Shakespeare, do “olho da mente” (“the mind’s eye”):


“Só me faltavas tu para me faltar tudo”

“O braço que falta ao mendigo é o que o sustenta”



é a partir do anos 80, sensivelmente, que a sua escrita se renova enquanto discurso criativo, enigmático, subversivo, irónico e auto-irónico, de forte cariz analítico e filosofante, tendo no provocado cotejo de contrários – com vista à problematização do “eu”– e na morte ou principalmente na pequena morte quotidiana, temáticas recorrentes.

A questão dos “múltiplos” na obra poética de Manuel António Pina é um dos aspectos mais fascinantes e prende-se intimamente com o tema desta palestra. Jorge Luís Borges, uma referência seminal para MAP escreveu “Eu sou todos os livros que li, todas as pessoas que conheci, todos os lugares que visitei, todas as pessoas que amei”. E é, de facto, impressionante o rol de autores cuja obra ou cujos versos é possível entrever na obra de MAP, mesmo para um leitor médio de poesia como sou, quer através da técnica da colagem, uma técnica vanguardista à década de 60 (quando outros se perdiam com a linguagem da linguagem) – lembremo-nos (como bom exemplo) de Rauchenberg, na pintura, uma década antes - técnica hoje chamada no mundo da música de samplagem, quer também o que MAP intitula de metamorfoses, no sentido de transformações de poemas, por vezes artes poéticas, que não assumem ainda o pendor kitsch de pastiche ou paródia, antes o de homenagem e afecto: Holderlin, Breton, Camões, Laforgue, Baudelaire, Blok, Quevedo, Yeats, Mallarmé, Fernando Lemos, Pound, Antero, Shakespeare, Nietzsche, Bataille, Hugues, Apollinaire, assim mesmo, sem qualquer ordem geográfica ou cronológica, somente ao fluir das leituras e da escrita que escreveram e que assim se vê eternamente lida para voltar de novo a ser escrita. Para ser re-escrita.

São referências intertextuais que surgem naturalmente no decurso da sua obra, não por pedantismo ou petulância, que não restem dúvidas, - aquele que os cita refere igualmente como referências Bob Dylan ou os Beatles, oriundos da música popular anglo-saxónica, Hugo Pratt, vindo da banda desenhada, ou até a Bíblia (como veremos mais adiante), - antes surgem por pura honestidade intelectual, deste que assegura:


“Igual aos deuses (com pouco me contento)
de livros e silêncio me alimento”


Existe porém nesta obra um grupo mais estrito onde a afinidade literária é significativamente maior, no tom (talvez), nos assuntos (seguramente), e na técnica (por vezes). Diria até que se trata de uma afinidade visceral, fraternal, tal é a consanguinidade literária com este grupo de poetas acerca de cujos livros – e pensando em MAP - Borges bem poderia sublinhar a sua máxima de que é bem mais importante para um autor reler (e reler e reler) do que ler: T. S. Eliot, Alexandre O’Neill, Mário Cesariny, Cesário Verde, Camilo Pessanha, Rilke, Lewis Caroll, Ruy Belo e os maiores, para MAP, de entre todos, Jorge Luís Borges, ele mesmo, e esse outro poeta contra quem, suspeito, MAP escreve e escreveu – "matando o pai?" - chamado Fernando (de Campos Caeiro Reis Soares) Pessoa.

Porque a dicotomia entre o “eu” e o “outro”, (ou os “outros”,) num processo de ciciante afastamento e aproximação, em que o “eu” se diz “múltiplo” descobrindo-se e ocultando-se no “outro” ou nos “outros”, esta dicotomia, dizia, aparece a cada verso na poesia de MAP. O “eu” (seja o poeta narrador ou uma persona literária) confronta-se assim por um lado com a “memória” de si mesmo que re-lembra, re-conta e re-nova, ao mesmo tempo que engloba a "memória" do “outro”, ou dos "outros" em si. Igualmente presente na sua obra leio a dissociação corpo-mente, como se, a tempos, a mente descrevesse acções ou o pensamento do próprio corpo onde se insere, falando porém de um ponto de vista exterior a ele. Borges, Pessoa e possivelmente Roberto Juarroz sentir-se-iam eternamente reescritos se pudessem ler MAP.

Um dos instantes mais ternos em que a sua poesia plasma na perfeição o que acabo de referir acontece no poema KINDERGARTEN, onde o poeta escreve:


“As filhas brincam fora de o quê?
que infinitamente se interroga?
O fora de elas é dentro
de que exterior centro?”


ou neste outro poema de “Cuidados Intensivos” (de 1994), que ficciona uma Última Ceia de Cristo sui generis, instabilizando o papel do narrador/poeta naquela mesa de 13 mas também, de forma mais abrangente e transfigurada, questiona o seu peso pessoal no seu círculo de influência – ou poderia ter escrito, o lugar que a fé ocupa nas suas crenças pessoais -, mas também, se quisermos, interrogando os valores da Honestidade e da Justiça pelas quais tudo no mundo se rege ou se não rege, tudo isto através de um salto temporal histórico de séculos tão característico do pluralismo pós-moderno, onde o poeta é, à vez, o “eu” e os seus “múltiplos”: os apóstolos, o servo, um pecador, São Tomé, que duvidou, São Pedro, que descartou, São João, enternecido, Judas, que o traiu, e o próprio Cristo, como que dizendo “eu sou todos os outros”:


D’APRÈS D. FRANCISCO DE QUEVEDO

Também eu ceei com os doze naquela ceia
em que eles comeram e beberam o décimo terceiro.
A ceia fui eu; e o servo; e o que saiu a meio;
e o que inclinou a cabeça no Meu peito.

E traí e fui traído,
e duvidei, e impacientei-me, e descartei-me;
e pus com Ele a mão no prato e posei para o retrato
(embora nada daquilo fizesse sentido).

Não subi aos céus (nem era caso para isso),
mas desci aos infernos (e pela porta de serviço):
comprei e não paguei, faltei a encontros,
cobicei os carros dos outros e as mulheres dos outros.

Agora, como num filme descolorido,
chegou o terceiro dia e nada aconteceu,
e tenho medo de não ter sido comigo,
de não ter sido comido nem ter sido Eu.


Como se o Real não passasse – utilizando a conhecida metáfora da cebola – de um pequeno globo de camadas concêntricas onde cada camada desconhece ainda quantas placas de sedimentação protege para dentro, e quantas a protegem por fora. Agrada-me este conceito de poesia enquanto arqueologia do Real, como forma de des-tapar, des-cobrir, des-cascar, deixando apenas a última camada, que chamaria de fina camada de pudor, sob pena de à custa de tanto descascar, como à cebola, levar o leitor às lágrimas do sentimentalismo, o que deve ser evitado.

Queria fechar a comunicação lembrando ainda, à vista do tema “Aquele que escreve é eternamente escrito” que o mau poeta copia descaradamente os versos de outros; o bom é o que rouba com classe e ainda tem o topete de intitular o acto com o pomposo epítome de “intertextualidade”. E queria louvar o papel do poeta que respeita a tradição e sobre ela trabalha. O dito de Bernard de Chartres, que viveu no século XII, relatado pela primeira vez no Metalogicon de John of Salisbury é sobre isso mesmo significativo:


Frequentemente sabemos mais, não porque tenhamos avançado pela nossa habilidade natural, mas porque somos apoiados pela força mental de outros, e possuímos riquezas que herdámos dos nossos antepassados. Bernard de Chartres costumava comparar-nos a insignificantes anões encarrapitados nos ombros de gigantes. Ele assinalou que nós vemos mais e mais longe do que os nossos predecessores, não porque nós tenhamos uma visão mais perspicaz ou maior altura, mas porque nós somos levantados e levados em cima da sua gigantesca estatura.


Anões aos ombros de gigantes, portanto, como nos lembra Matei Calinescu. É como me sinto perante MAP. A inspiração, desenganem-se os românticos, não passa de leitura, ofício e tradição. O meu desejo é que um dia alguém me roube tão bem como eu o roubei a si, Manuel António, tão bem como suspeito, - apenas suspeito, - que o Manuel António soube roubar a outros.


Porto, Feira do Livro, 6 de Junho de 2009.

3 comentários:

DM disse...

Caro Poeta João Luís Barreto Guimarães,

Grande, grande é o Poeta Manuel António Pina, e belo, excelente este seu texto.

Domingos da Mota

clarinda disse...

A chamada Cópia Sublime dos renascentistas.É rara e, como diz, passa pela leitura, ofício e tradição.


Obrigada pelo seu poema inteiro. Afinal nem sei se esteve na feira do livro.Mas choveu tanto.

Klatuu o embuçado disse...

Gigantes sós os do Quixote; teria que crescer mais e ganhar velas...