quarta-feira, junho 24, 2009

JOHN MONTAGUE


JOHN MONTAGUE nasceu em Brooklin, Nova Iorque, em 1929 mas cedo se mudou, ainda criança, para Garvaghey, Irlanda, devido a dificuldades económicas de seu pai que emigrara para o Novo Mundo em 1925. Tal facto representou como que um retrocesso no tempo e não deixou de influênciar a sua poesia que assim não rejeita uma certa ruralidade, contrária aos modismos reinantes. É um poeta de tal qualidade que bem poderia ter sido o escolhido para vencer o Nobel atribuido a Seamus Heaney, sem desprimor para este. É um poeta dessa estirpe. Montague é celebrado, entre outros aspectos, pela musicalidade da sua poesia, pelo uso da assonância e pela forma como cuida de cada linha do poema através de um apurado uso do enjambement, acreditando que a forma como o poema se apresenta à leitura deve simetrizar o discurso coloquial. Não fugiu à temática irlandesa mas como bem notou Jorge Gomes Miranda: "Como Heaney, a sua atitude em relação à luta entre protestantes e católicos na Irlanda do Norte é a de alguém que não toma partido por nenhum dos lados, nela apenas vendo a universal tragédia da vida humana." Ética, enfim. De saída para Dublin, aqui deixo 3 poemas que foram alvo de tradução colectiva nos encontros de poesia "Poetas em Mateus", em Setembro de 1991, e editados pela Quetzal em 1993 sob o título "Uma Luz Diferente", edição revista, completada e apresentada por Fernando J. B. Martinho. Com a devida vénia:




A TRUTA

De bruços na margem afastei
Os juncos, para deixar que as mãos
Entrassem na água sem a enrugar
E para as inclinar lentas no sentido da corrente
Até onde ela estava, leve gavinha
No seu fluido sonho sensual.

Senhor sem corpo da criação
Debrucei-me por instantes sobre ela
Tomando o gosto à minha própria ausência,
Expandindo os sentidos em câmara
Lenta, a pausa fotográfica
Que precede a acção,

Enquanto a curva das minhas mãos
Ia ondulando sobre o seu corpo
Ela irrompeu, com visível prazer.
Estava tão irrealmente perto
Que podia contar-lhe cada pinta
Mas sem a cobrir de sombra, até que

As palmas das mãos se tornaram armadilha
Sob as guelras que latejavam levemente.
Depois (revestindo a minha própria forma
Ampliada, a cavalo nas águas)
Agarrei-a. E ainda hoje
Saboreio o seu terror nas minhas mãos.


§


A GAIOLA


Meu pai, o menos feliz
dos homens que conheci. O seu rosto
retinha a palidez
dos que trabalham debaixo do chão:
os anos perdidos em Brooklyn
ouvindo o metropolitano
sacudir a terra.

Mas um irlandês tradicional
que (libertado das grades
da estação de Clark Street)
bebia whiskey puro até
alcançar o único elemento
em que ainda se sentia
à vontade: o espesso olvido.

E mesmo assim recompunha-se,
quase todas a manhãs,
para marchar rua abaixo
distribuindo sorrisos
em todas as direcções
do decente bairro de brancos
apascentado pela igreja de Santa Teresa.

Quando regressou
dávamos passeios juntos
pelos campos de Garvaghey
olhando os espinheiros nas moitas
de verão, como se ele
nunca tivesse partido;
uma curva da estrada

que abrigava ainda
malmequeres. Mas nós
não sorríamos na
partilhada cumplicidade
de um sonho, pois quando,
exausto, Ulisses volta a casa
Telémaco deve partir.

Muitas vezes, ao descer
ao metro ou às profundas,
vejo a sua cabeça calva, atrás
das grades da bilheteira;
a marca de um antigo acidente
de automóvel lateja-lhe
na fronte de fantasma.


§


UMA LÍNGUA ENXERTADA


(Muda,
em sangue, eis a cabeça
decepada sufocando
ao falar outra língua —

Como num
sonho longamente reprimido
a provação gaguejante e
confusa que me cabe)

Uma criança
irlandesa chora na escola
ao ter de decorar o seu Inglês.
De cada vez que erra

O professor
grava-lhe mais um sinal
na coleira de pau
que traz ao pescoço

Como o chocalho
de uma vaca, a peia
de uma cabra extraviada.
Tartamuda, tropeça

Cheia de vergonha
nas sílabas mudadas
do seu próprio nome:
regressa triste a casa

Para achar
a pedra enegrecida
da lareira paterna
cada vez mais estranha:

Nas choupanas
e no campo, ainda
falam a velha língua.
Impossível saudá-los.

Aprender
uma segunda língua,
tão dura humilhação
como nascer duas vezes.

Décadas depois
a fala do neto da criança
tropeça ainda nas sílabas
perdidas de uma velha ordem.


2 comentários:

Jorge disse...

belo e comovente, a gaiola.

Anónimo disse...

Belo e comovente e político, também, ''Uma Língua Enxertada''