ZBIGNIEW HERBERT (1924 – 1998) nasceu em Lvov. Mudou-se com a família para Cracóvia quando a sua cidade natal foi integrada na Ucrânia. Formado em economia e direito, estudou ainda filosofia e história de arte. Nas décadas de sessenta e setenta viajou muito, sobretudo pela França, Grécia e Itália. Viveu em Paris, Berlim e nos Estados Unidos, tendo em 1992 regressado definitivamente a Varsóvia, na Polónia, já doente. O poema “O Divino Cláudio” é aqui apresentado, em mais uma notável colaboração de Jorge Sousa Braga, para o Poesia Ilimitada.
O DIVINO CLAUDIO
Dizem que fui
gerado pela Natureza
mas que esta deixou o trabalho por acabar
como uma escultura abandonada
um esboço
o fragmento danificado de um poema
durante anos fingi que era um idiota
os idiotas vivem mais seguros
calmamente pus de lado os insultos
se plantasse todos os buracos
cavados na minha face
um olival teria nascido
um vasto oásis de palmeiras
recebi uma educação complexa
Tito Lívio os retóricos e os filósofos
falava grego como um ateniense
embora só me pareça com Platão
quando estou deitado
completei os meus estudos
nas tavernas da doca e nos bordéis
esses dicionários não escritos de latim vulgar
e vós insondáveis tesouros de crime e luxúria
depois do assassínio de Calígula
escondi-me por detrás de uma cortina
arrastaram-me de lá à força
não consegui adoptar uma expressão inteligente
quando arremessaram aos meus pés o mundo
ridículo e plano
a partir de então tornei-me o mais diligente
imperador da história universal
um Hércules de burocracia
recordo com orgulho a minha lei liberal
permitindo que se soltassem gases
do traseiro durante as festas
nego a acusação de crueldade muitas vezes feita contra mim
na realidade estava apenas distraído
no dia do assassínio violento de Messalina—
coitada admito que foi morta às minhas ordens—
perguntei durante o banquete—porque é que Messalina não veio
respondeu-me um silêncio de morte
na verdade tinha-me esquecido
às vezes acontecia-me convidar
o morto para um jogo de dados
punia a falta de comparência com uma multa
sobrecarregado de trabalho
devo ter errado em alguns pequenos detalhes
é o que parece
ordenei que trinta e cinco senadores
e os cavaleiros de cerca de três
centuriões
fossem executados
bem e daí
um pouco menos de púrpura
menos anéis de ouro
por outro lado—
e isto não é um gracejo—
mais espaço no teatro
ninguém queria compreender
que o objectivo destas medidas era sublime
sempre desejei fazer com que a morte fosse familiar às pessoas
embotar o seu gume
reduzi-la à dimensão banal
do dia a dia
de uma leve depressão ou de uma constipação
eis aqui a prova
da delicadeza dos meus sentimentos
retirei a estátua do gentil Augusto
da praça das execuções
para que o mármore sensível
não ouvisse os berros
dos condenados
as minhas noites eram dedicadas ao estudo
escrevi a história dos Etruscos
a história de Cartago
uma composição ligeira sobre Saturno
uma introdução à história do jogo
e um tratado sobre o veneno das serpentes
fui eu quem salvou Ostia
da invasão da areia
drenei pântanos
construí aquedutos
desde então tornou-se mais fácil em Roma
lavar o sangue
expandi as fronteiras do império
até à Britânia e à Mauritânia
e se não me engano a Trácia
a minha morte deve-se à minha mulher Agripina
e a uma paixão incontrolável por boletos os cogumelos—
a essência da floresta—tornaram-se a essência da morte
posteridade—recorda com honra e gratidão
pelo menos um mérito do divino Cláudio
acrescentei novos sinais e sons ao nosso alfabeto
expandi os limites da fala isto é
os limites da liberdade
as letras que descobri—adoradas
filhas—Digama e Antisigma
precedem a minha sombra
enquanto com passos titubeantes
persigo a sombria terra de Orcus
O DIVINO CLAUDIO
Dizem que fui
gerado pela Natureza
mas que esta deixou o trabalho por acabar
como uma escultura abandonada
um esboço
o fragmento danificado de um poema
durante anos fingi que era um idiota
os idiotas vivem mais seguros
calmamente pus de lado os insultos
se plantasse todos os buracos
cavados na minha face
um olival teria nascido
um vasto oásis de palmeiras
recebi uma educação complexa
Tito Lívio os retóricos e os filósofos
falava grego como um ateniense
embora só me pareça com Platão
quando estou deitado
completei os meus estudos
nas tavernas da doca e nos bordéis
esses dicionários não escritos de latim vulgar
e vós insondáveis tesouros de crime e luxúria
depois do assassínio de Calígula
escondi-me por detrás de uma cortina
arrastaram-me de lá à força
não consegui adoptar uma expressão inteligente
quando arremessaram aos meus pés o mundo
ridículo e plano
a partir de então tornei-me o mais diligente
imperador da história universal
um Hércules de burocracia
recordo com orgulho a minha lei liberal
permitindo que se soltassem gases
do traseiro durante as festas
nego a acusação de crueldade muitas vezes feita contra mim
na realidade estava apenas distraído
no dia do assassínio violento de Messalina—
coitada admito que foi morta às minhas ordens—
perguntei durante o banquete—porque é que Messalina não veio
respondeu-me um silêncio de morte
na verdade tinha-me esquecido
às vezes acontecia-me convidar
o morto para um jogo de dados
punia a falta de comparência com uma multa
sobrecarregado de trabalho
devo ter errado em alguns pequenos detalhes
é o que parece
ordenei que trinta e cinco senadores
e os cavaleiros de cerca de três
centuriões
fossem executados
bem e daí
um pouco menos de púrpura
menos anéis de ouro
por outro lado—
e isto não é um gracejo—
mais espaço no teatro
ninguém queria compreender
que o objectivo destas medidas era sublime
sempre desejei fazer com que a morte fosse familiar às pessoas
embotar o seu gume
reduzi-la à dimensão banal
do dia a dia
de uma leve depressão ou de uma constipação
eis aqui a prova
da delicadeza dos meus sentimentos
retirei a estátua do gentil Augusto
da praça das execuções
para que o mármore sensível
não ouvisse os berros
dos condenados
as minhas noites eram dedicadas ao estudo
escrevi a história dos Etruscos
a história de Cartago
uma composição ligeira sobre Saturno
uma introdução à história do jogo
e um tratado sobre o veneno das serpentes
fui eu quem salvou Ostia
da invasão da areia
drenei pântanos
construí aquedutos
desde então tornou-se mais fácil em Roma
lavar o sangue
expandi as fronteiras do império
até à Britânia e à Mauritânia
e se não me engano a Trácia
a minha morte deve-se à minha mulher Agripina
e a uma paixão incontrolável por boletos os cogumelos—
a essência da floresta—tornaram-se a essência da morte
posteridade—recorda com honra e gratidão
pelo menos um mérito do divino Cláudio
acrescentei novos sinais e sons ao nosso alfabeto
expandi os limites da fala isto é
os limites da liberdade
as letras que descobri—adoradas
filhas—Digama e Antisigma
precedem a minha sombra
enquanto com passos titubeantes
persigo a sombria terra de Orcus
2 comentários:
"Sonhas um livro de infância
Que te não é dado ler:
--------------------------"
Estou me sentindo uma desbravadora, descobrindo pelo seu blog outros caminhos para a poesia.
Adorei o seu blog.
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