Da Introdução de “Um Mundo Claro, Um Dia Escuro” (Limiar, Porto, 1988), de August Willemsen, com uma imensa vénia:
“(...) Ao terminar a 2ª Guerra Mundial havia, pois, na Holanda, poetas, mas não havia poesia moderna (…). Parece que, à maneira dos modernismos português e brasileiro de 1915 e 1922, a ‘revolução de 1950’ se deu, na Holanda, simultaneamente na poesia e nas artes plásticas. Em 1948 os pintores holandeses Corneille e Karel Appel formaram, junto com artistas belgas e dinamarqueses, o ‘grupo Cobra’ (Copenhaga, Bruxelas, Amsterdam), que preconizava e praticava uma pintura primitiva, às vezes selvagem, inspirada pelo desenho infantil e pela arte dos negros africanos. A esse grupo juntaram-se os poetas Lucebert (imagens), Remco Campert, Bert Schierbeek e Gerrit Kouwenaar, para em 1950 formarem um grupo literário independente, conhecido como os ‘Vijftigers’ (‘Cinquentistas’, ou seja, a geração de ’50). (…) Os Cinquentistas, conscientes do atraso da poesia nacional, queriam recuperar o tempo perdido. Assim, vemos em Schierbeek, Kouwenaar, Lucebert e Campert, vestígios de dadaísmo e do surrealismo. Mas também há neles, de acordo com a estética da geração de pós-guerra em geral e com a do grupo Cobra em particular, o esforço de representar um mundo radicalmente diferente do antigo, para o qual recorrem a elementos da linguagem e da imagética infantis: subvertem a sintaxe e a gramática, valendo-se de processos altamente intuitivos e associativos.
(…) LUCEBERT (pseudónimo de L. J. Swaanswijk, 1924-1994) é a incarnação do espírito cinquentista: exuberante, agressivo, rebelde. Tanto na sua obra plástica (…) como na de poeta, é manifesto o seu desprezo por dogmas e convenções artísticas e sociais. Busca a inspiração na arte primitiva (o tema do negro), na ingenuidade (tema da criança), na espontaneidade, na atonalidade, do que resulta uma arte sumamente revolucionária, livre mas ao mesmo tempo estruturada pelo intuito de restituir ao homem as forças elementares, perdidas ou recalcadas na civilização ocidental. Pelo seu olhar desprevenido, que considera as coisas sem situá-las em qualquer sistema (…), pela absoluta liberdade de associações de imagens, pelo emprego de metáforas, símbolos e mitos, pela formação de neologismos e pela desintegração da sintaxe, Lucebert é, à primeira leitura, um dos mais difíceis poetas holandeses modernos."
MEU POEMA
sou o fantasma holofote
instalado em nicho escuro
aqui tem coisa sus-
surra a jóia surripiada
ofuscada por mim ao voltar da festa
sou um espantalho sou olhado
no ovo recheado da minha dor
e a ave que deixa o filhote
espatifar-se no chão (é a sua espécie)
nasce com olhos meigos
sou o grande caos após o incêndio
sou o mobiliário gotejante
que ainda fumega e sou o torcer de mãos
o beber aguardente na noite húmida
sou a constipação após o grande incêndio
sou o tirano pálido na manhã alva
o seu relógio vai atrasado mas o coração antecipa
a sentença de morte e uivo
ao cheiro de carne humana
embora não goze tal delícia há anos
sou a rapariga que na minha memória
encontro na colina florida
converso com ela tão meigamente como a brisa estival
fala ao convalescente
ela é muito pálida e tem rosto de memória
sou a voz que não dá voz
ao que já tem voz
mas que sobre o silêncio angustioso
coloca a imagem miracular de uma palavra
e só depois alheio a todo o medo
se sabe o que eu quis dizer com tudo isso
o poema é amuleto
(Tradução de August Willemsen e Egito Gonçalves)
3 comentários:
Apanhei esta antologia na feira q decorre na praça da Ribeira, em Lisboa (também lá estão muitos outros títulos da colecção de poesia da Limiar e alguns números da revista com o mesmo nome).
Egito Gonçalves, além de grande poeta ele próprio, foi um grande divulgador de poesia em línguas "estranhas"
Este poema deu-me imensa vontade de reler a Ode Marítima. Meu Deus, que assombro a Ode Marítima!
Quem dá corda à poesia?
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