sexta-feira, março 17, 2006

ACERCA DO SUBJECTIVISMO


Tenho lido com atenção as “breves notas para uma poética da terminologia” que o poeta Jorge Melicias tem colocado on-line, nesse blog de leitura obrigatória que é o “da literatura”. E identifico-me com alguns dos atributos com que informa a sua ideia de poesia. Subscrevo o seu conceito de livro de poesia enquanto “unidade temática e estilística”. Agrada-me a ideia de uma poesia tensa, concisa, densa, elíptica. Uma poesia que não seja oferecida, uma poesia que do outro lado de um sentido mais óbvio encerre um outro sentido e, se possível, um outro ainda. Uma poesia que, por isso mesmo, demande interpretação. E que exista também para o seu léxico, como a de Luís Quintais, por exemplo. O que me parece é que esse pressuposto que, julgo entender, ambos partilhamos, não exclui pelo meu lado, poéticas mais subjectivas contra as quais Jorge Melícias me parece apontar o dedo. É verdade – e neste terceiro ponto também estaremos próximos – que a memória é, como diz, uma muleta literária: é bem mais difícil inscrever o presente num poema do que escrever sobre o passado. Os poemas sobre a memória escudam-se no perdido. O passado é como o código postal: sugere tal grau de adesão emocional no leitor que é “meio caminho andado” para o conquistar. Onde não estaremos porventura de acordo – se bem leio os seus posts – é na asserção de que as poéticas mais subjectivistas ou confessionais sejam parcas em trabalho oficinal sobre a linguagem. Robert Lowell é um poeta assumidamente confessional, altamente subjectivo e tem um extraordinário trabalho sobre a linguagem. É apenas um exemplo, tão estrangeiro quanto arrefecido, para não ferir susceptibilidades. Tal como sugerir que o subjectivismo não acarreta riscos: mas se é essa precisamente a poesia que mais rasga, que mais abre caminhos, que menos se acomoda a modelos, como afirmar que não arrisca? Como dizer que não comunica? Estaremos também provavelmente de acordo nisto: quando lemos poesia desejamos ser surpreendidos. Acontece-me com os mais variados autores. A poesia não é um campeonato, por muito que custe a alguns, e nunca se deve comparar poetas. Surpreeendeu-me, por exemplo, ler há já algum tempo atrás, um poema que Jorge Gomes Miranda publicou em “A Hora Perdida” (Campo das Letras, 2003):


QUATRO MENSAGENS DEIXADAS NO TELEMÓVEL

...

“Fala do Laboratório de Análises Clínicas,

Tenho aqui nas mãos o envelope

com o resultado das suas análises.

Quer que o envie por correio ou

passará por cá para buscá-las?

Informe-me da sua decisão.”


ou, este poema que Manuel de Freitas incluiu em “O Coração de Sábado à Noite” (Assírio & Alvim, 2004), que tinha apenas verso e título:


MARTHA

Perdi o teu número.


Vou falar sem saber o que o Jorge pensa destes dois poemas, é certo. Mas para mim, eis dois poemas que seguramente rasgam convenções, que geram surpresa, que se inventam e superam e – mais do que isto – que se inscrevem na história da poesia portuguesa. Por mais simples que pareçam. O primeiro, porque faz com que o quotidiano mais formal e mais banal invada a poesia, a tal Casa Sagrada da Poesia, através de um conspurcar da mesma com o hiper-realismo de um formal telefonema acerca de análises clínicas. O segundo, porque nos convida também a questionar o coloquialismo, o que pode ou não ser poesia, no fundo essa ténue fronteira entre fala e poesia. São dois poemas que investigam. Que desconstroem. Não evitam o mundo, nem fogem dele. Que culpa têm se esse mundo é pobre e social? Ambos se informam de Hiperrealismo. Ambos são altissímamente subjectivos. Ambos são extraordinariamente quotidianos. Ambos requereram imaginação. Ambos são tensos e concisos. Ambos são síntese. Não me parece que nenhum dos dois deixe de lado a ambição de comunicar, pelo menos comunicar o plasmar de um instante. E ambos acarretaram para os seus autores – que em boa hora tiveram a coragem de os dar à estampa – uma incomparável carga de risco. E que risco correram: porque ambos são poemas não líricos, ambos misturam ao sabor deste pluralismo de início de século, a fala quotidiana e a poesia. Em calão: ambos estão “muito à frente”… Ambos, finalmente, realizam um arriscadíssimo trabalho sobre a linguagem. Pode ser simples. Mas é oficina arriscada. Não é poesia elegiaca, é certo. Mas dizem-me mais como poemas sobre o meu mundo, sobre este chão que piso, este mundo-chão contemporâneo onde respiro do que outros que se continuam a alimentar da palavra pela palavra ou de simbolismos estafados. São poemas-exemplo. E trazem à poesia o presente, falam de telemóveis e análises clínicas como outros antes deles, num passado mais distante, falaram de correspondência postal e sanatórios. São, por isso, poemas do futuro. Só precisam de tempo. Acredite. Tenho muito gosto em continuar este diálogo consigo, se assim entender.


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