sexta-feira, fevereiro 03, 2006

A música da poesia: aliteração, assonância, consonância e rima


Não é apenas através da eufonia, da cacofonia ou da onomatopeia que se consegue sugerir ao leitor a presença de música num poema. Atentemos a esta passagem de “Livings”, um poema de “High Windows” do poeta inglês Philip Larkin (1922-1985), traduzida por Rui Carvalho Homem nas Edições Cotovia (2004), a quem peço emprestada a tradução:


“The wine heat temper and complexion:
Oath-enforced assertions fly
On rheumy fevers, resurrection,
Regicide and rabbit pie.”


“O vinho aquece o ânimo e as faces:
Pragueja-se a apoiar opiniões
Sobre a ressurreição ou a febre reumática,
O regicídio, ou a receita de empadões.”


A nível da denotação nada parece ligar “ressurreição”, “regicídio”, “febre reumática” e uma “receita de empadões”. O que se passa então neste poema? O efeito utilizado pelo inglês ao repetir palavras onde uma mesma consoante está presente, neste caso o “r” – inteligentemente traduzido por Rui Carvalho Homem ao forçar o vocábulo “receita” – chama-se aliteração. A aliteração pode ser definida como uma "sucessão de sons similares" e ocorre quando o poeta repete o mesmo som de consoante no inicio de sucessivas palavras – no caso da aliteração inicial – ou no meio de sucessivas palavras – caso da aliteração interna. À aliteração final dá-se antes o nome de rima. Atentemos a outro exemplo voltando a “Carta de Agosto”, de Inês Lourenço, um poema de tom sarcástico que nos fala de uma certa ideia de cidade nos meses de verão:


“(…) esquinas e esplanadas de cerveja, homens
(…) escarrando na noite (…)”


O que se pretende com o uso da aliteração? No caso de Inês Lourenço, parece-me evidente a intenção por parte da autora de desenhar, sonoramente, a imagem da rotina, como se tivesse escrito "as mesmas esquinas, as mesmas esplanadas, os mesmos homens", reforçando a ideia de um cenário boçal e homogéneo, de um certo nivelamento por baixo. No caso do inglês, é interessante pensar que Larkin possa ter pretendido com a repetição do “r” traçar o mínimo denominador comum entre momentos distintos de uma mesma conversa, ao desenhar o fio do discurso de - quatro? - bêbados que vão saltando de assunto em assunto, tão dispares possam ser entre eles, com a mesma insistência e cadência. Através do uso da aliteração, Larkin consegue desenhar-nos a imagem de que as conversas uma vez encetadas prolongam-se indefinidamente entre temas contíguos mantendo porém um fio condutor comum. Mas então porque não usou o poeta quatro vocábulos começados por outra consoante? Provavelmente porque pretendeu sugerir adicionalmente o efeito sonoro do ralar da conversa, do rolar da língua sobre os dentes. A aliteração pode ser inicial, como pode também ser interna, tal como sucede por exemplo no poema de Maria Teresa Horta (Lisboa, 1937), “Segredo”, incluído em “Minha Senhora de Mim” (1971), livro à data apreendido pela PIDE-DGS:


“Não contes do meu
vestido
que tiro pela cabeça

nem que corro os
cortinados
para uma sombra mais espessa

(…)

Não contes do meu
novelo
nem da roca de fiar

nem o que faço
com eles
a fim de te ouvir gritar”


Neste caso, a repetição do som “ti” tem para mim o efeito de colar internamente a estrutura do poema nas suas duas primeiras estorfes, sublinhando adicionalmente qual o destinatário do texto. Quando o som repetido não é o de uma consoante mas o de uma vogal, estamos perante uma assonância. Tal como a aliteração, a assonância pode ser inicial, se ocorre no início de palavras sucessivas, ou interna, se ocorre no meio de palavras. No poema “Despertar” de Eugénio de Andrade, retirado de “Coração do Dia” (1958), encontrei estes versos:


“É um pássaro, é uma rosa,
é o mar que me acorda?”


onde noto a presença de uma assonância interna entre “pássaro” e “mar” e outra entre “rosa” e “acorda”. Aqui a intenção do poeta parece não ter sido outra que não a legitima vontade de embalar em música o poema. Finalmente, a rima - a aliteração e a assonância finais - é talvez o mecanismo mais capaz de aproximar a poesia da música. Ocorre num poema se duas ou mais palavras ou versos contêm vogais e consoantes similares ou idênticas. Os exemplos são virtualmente infinitos. A rima pode ser exacta – como ocorre em “não” e “pão” – ou aproximada/imperfeita – como ocorre em “cão” e “com”. Chama-se consonância à rima imperfeita onde se mantêm as mesmas consoantes mas diferentes vogais – como acontece em “sal” e “sol”. Quase sinónimo de música, a rima pode também ser interna ou final, dependendo da sua localização no interior do verso ou no final o verso. Pessoalmente, como bem notou Frederico Lourenço, não é um recurso que eu utilize preferencialmente dado me parecer algo clássico e claramente não servir a minha procura de contemporaneidade, preferindo antes o ritmo e a métrica para trazer música a poesia. Mas tem-se assistido a um renascimento do interesse nas infinitas possibilidades da rima, ao ponto de no meio anglo-saxónico se designar de Novos Formalistas à corrente de poetas que desenvolvem actualmente aquele recurso. E não é, de todo, algo que esteja esgotado se atentarmos à obra de Vasco Graça Moura (Porto, 1942) ou mesmo Fernando Pinto do Amaral (Lisboa, 1960), que conseguem nos seguintes exemplos - e com notável rigor - poemas de marcada contemporaneidade:


barbie em diagonal

sem percorrer os dois lados da praça,
a atravessá-la pela hipotenusa,
de mini-saia curta que esvoaça
e mais ao léu com top em vez de blusa,

o tornozelo fino a dar-lhe a raça
nervosa e descuidada que produza
reflexos do seu corpo na vidraça
das lojas, dentro e fora, esguia e lusa

no porte de modelo, longas pernas
e cabelos ao vento. mas depressa,
que tão segura vai, se vê do seu

olhar que não atenta nem sequer nas
surpresas de viés quando atravessa:
tudo o que dá foi isto que me deu.

(Vasco Graça Moura, uma carta no inverno, 1997)


§


Relâmpago

Rompe-se a escuridão quando o olhar
para uma face o mundo se ilumina
com uma claridade repentina
capaz de, só por si, fazer brilhar

a substância tão irregular
de tudo o que se acende na retina
e através da luz se dissemina
por entre imagens vãs, até formar

um fluido movimento, uma paisagem
a que estes olhos quase não reagem
salvo se nesse instante o rosto for

transfigurado pela fantasia.
E às vezes é só isso que anuncia
aquilo a que chamamos o amor.

(Fernando Pinto do Amaral, Às Cegas, 1997)


no primeiro caso obedecendo ao esquema abab abab cde cde, e no segundo ao esquema abba abba ccd eed. É por estas - e por outras - que cada poema dança sua música.


2 comentários:

Vasco Pontes disse...

...Para além das figuras de estilo e da sua formalidade radical, gosto de conceito de ritmo e de conceitos a que eu, um bocado escuso aos formalismos da linguística, gosto de chamar de rima interna. A rima interna pode ter por base o som das consoantes ou o som das vogais, mas precisa de aparecer num certo lugar rítmico, para que, efectivamente, se possa chamar isso.
Outro conceito é o de rima discreta. A rima discreta, que pode ou não estar na rima interna, é uma rima em que os sons das sílabas tónicas se conjugam em bora possam não concordar para formar uma musicalidade que o leitor sente como agradável mesmo que não saiba explicar porquê.
É a mesma que o que está no post?
Talvez seja...

Vasco Pontes disse...

Agora vou introduzir um conceito ainda mais difícil: Chama-se "rima discreta cruzada".
Um exemplo, perfeitamente ao acaso será este:
"quando devolve ao mundo sublimadas
as palavras que o mundo lhe ensinou". como já defini rima discreta não o farei agora, falta portanto o "cruzada"; repare-se que o "devolve" no início do 1º verso, rima discretamente com o ensinou no final do segundo. Com a mesma discrição "sublimadas" no fim do primeiro verso rima com "palavras" no início do segundo.
Será esta uma nova figura de estilo? Valerá a pena patenteá-la ?
(Só um momento preciso de controlar o riso. Pronto, já está).