JAIME ROCHA
Mulher Inclinada com Cântaro, s. l.
Volta d' Mar, 2012
por JOÃO PAULO SOUSA
Da obra de Jaime Rocha pode dizer-se que possui uma admirável capacidade de criar figuras e situações que constituem quadros de grande intensidade dramática, para tal não precisando de muito mais do que de um enquadramento feito por sugestões e alusões, muitas das vezes apostando decisivamente na dimensão visual dos referidos quadros. Detectável nos diversos géneros literários trabalhados pelo autor, esta característica permite aproximar os seus livros uns dos outros, em especial os de poesia e os de ficção narrativa. No caso concreto deste pequeno volume, o leitor depara-se com um poema dividido em dezoito partes, cada uma devidamente numerada, compondo uma cena em que o apelo dos sentidos é evidente, mas requerendo também o forte contributo da imaginação. É, aliás, sob esse signo que a obra se inicia, ao ser lançada uma pergunta que podemos considerar como o motor imaginativo do livro:
Uma mulher com um cântaro.
O que faz uma mulher com
um cântaro? (p. 7)
De certo modo, é como resposta à perplexidade instituída nesta pergunta que se desdobram as dezoito partes do poema, uma resposta assente na vertente visual e pictórica, que a primeira parte anuncia e a última vem confirmar. Assim, se, no início, o «cão ladra, remexe na areia, / de costas, como um pintor que / deixou no papel um cesto de limões / e uma garrafa» (p. 7), no final, o regresso ao estado primordial encontra uma justificação equivalente:
Como se os acontecimentos do dia
estivessem dentro de uma pintura,
por detrás das tintas. (p. 24)
Os acontecimentos do dia apagam-se como se não tivessem existido, mas apenas depois de criarem no leitor uma tão forte impressão que os leva a tornarem-se mais verdadeiros do que muitos factos supostamente reais. Dito de outro modo, o que Jaime Rocha constrói nos quadros intermédios é a sugestão de uma história de fidelidade e de perda, marcada por uma relação umbilical e até mesmo paroxística com a natureza. Ora, do ponto de vista estético, é preciso que o leitor identifique ou reconheça essas impressões, que as tome como suas, e isso é conseguido graças ao processo de aproximação do ponto de vista da mulher ou mesmo do cão. Repare-se como tal efeito se desencadeia sem excesso de informação, quase de um modo elíptico, na parte do poema referente à descoberta do corpo do náufrago:
[…] Nesse Outono,
o corpo dele surgiu na praia já metade
comido pelos peixes____________
É ele, disse a mulher,
o meu náufrago.
E o cão salta em seu redor como se
tivesse chegado a um lugar de incêndio,
a uma zona de felicidade.
A mulher inclina-se então sobre
o cântaro, tapada por um lenço,
e bebe a água, toda a água, deixando
os lábios colados ao barro. (p. 18)
O comportamento que quase classificaríamos como ingénuo do cão – mas desmentido por aquele «como se» e pela referência à «zona de incêndio» – e a atitude na aparência insólita da mulher descendem directamente da crua descrição do náufrago e do determinante possessivo com que a mulher nos lança para o interior da sua perspectiva («o meu náufrago»). Subtilmente instalado nesse ponto de vista, o leitor não quer saber de razões nem quer encontrar explicações; toma como sua a angústia daquelas figuras e, precisamente por dispensar qualquer tipo de leitura psicologista, reconhece-a como uma verdade antiga, capaz de o atingir com uma intensidade inesperada.
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