sábado, março 23, 2013

NOTAS SOBRE LIVROS (10)

BOÉCIO
Consolação da Filosofia (De Consolatione Philosophiae, 524 d. C.)
Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2011


por JOÃO PAULO SOUSA


Poderá, a minha afirmação seguinte, parecer inicialmente estranha a um leitor menos atento às vicissitudes do mundo dos livros em Portugal, mas será fácil prová-la: a Fundação Calouste Gulbenkian é, no actual contexto deste triste país, uma das editoras mais importantes. O conhecimento dos títulos que marcam indiscutivelmente o cânone ocidental serve para que se detecte a ausência de uma vasta quantidade dessas obras na edição portuguesa, em particular quando elas não respondem ao desmemoriado critério da coexistência temporal. Não pretendo discutir aqui o que significa «ser contemporâneo», mas posso dar um pequeno contributo reconhecendo que é possível alguém sentir-se hoje mais próximo de autores como Apuleio (séc. II d. C.) ou Sterne (séc. XVIII) do que da maior parte dos romancistas que publicam actualmente, sem que isso signifique um anacronismo irremediável. Na verdade, só a amplitude das leituras permite que alguém determine efectivamente as suas afinidades electivas e, ao mesmo tempo, conheça melhor o mundo em que lhe coube viver. Ora, tem cabido à Fundação Calouste Gulbenkian a tarefa de suprir algumas lacunas escandalosas no mundo português dos livros; seria fácil elencar títulos integrados no seu plano de edições que confirmassem a minha asserção, mas deter-me-ei apenas num, que possui a admirável capacidade de associar as ciências humanas e a poesia: Consolação da Filosofia, de Boécio.

O seu autor, conforme nos recorda o tradutor Luís M. G. Cerqueira, num prefácio tão informado quão conciso, foi a última das grandes figuras culturais dessa época que nos habituámos a designar como Mundo Antigo. Viveu entre 480 e 524 d. C., ano em que foi executado de forma especialmente violenta, depois de ter caído em desgraça na corte do rei Teodorico e ter sido encarcerado em Pavia. Foi aí, nessa situação de homem que passou de um lugar de topo para a de prisioneiro a aguardar uma execução quase inevitável, que este homem excepcional compôs um dos livros mais célebres da cultura europeia. O narrador da Consolação, que tem as características do próprio Boécio, é visitado na sua cela por uma mulher de estatura indecisa, que «ora se reduzia ao tamanho normal dos homens, ora parecia tocar o céu com o cimo da cabeça» (p. 18); esta mulher é a Filosofia e irá dialogar com ele ao longo de quase duzentas páginas, para o convencer de que a sua situação não é mais digna de desespero do que qualquer outra, ou talvez até menos do que muitas outras. Para o fazer, terá de o afastar dos falsos alívios, entre os quais se conta o da poesia:

Quando viu as Musas da poesia em volta do meu leito e a ditar-me as palavras para os meus lamentos, perturbando-se um pouco, enfurecida e com olhar ameaçador, disse:
– Quem permitiu a estas galderiazecas de teatro aproximarem-se deste infeliz, não para aliviarem com remédios as suas maleitas mas antes para ainda mais as alimentarem com doces venenos? (p. 19)


Poderão estas palavras de inspiração platónica (as referências ao autor de A República são constantes no decurso desta obra) parecer categóricas, mas a estrutura da Consolação desmente essa recusa absoluta da dimensão literária e, em particular, da poética. A cada sequência em prosa segue-se uma sequência em verso (é assim, aliás, que abre o livro), constituindo esta alternância uma forma designada por prosímetro, com antecedentes na literatura antiga. O proprósito, em Boécio, não seria apenas o de introduzir uma variação que tornasse mais agradável a leitura, pois é bem notório como, a partir de certa altura, as sequências em verso condensam a exemplificação dos argumentos com que a Filosofia vai encaminhando o seu interlocutor para o abandono dos valores terrenos e para a dedicação integral a um deus cristão que parece escapar ao modelo mais ortodoxo. Independentemente da importância dessas sequências enquanto partes de um conjunto, algumas delas não podem deixar de ser admiradas como poemas em que a condensação da imagem histórica reverbera como, por exemplo, nos melhores versos de um autor como Kavafis. Atente-se neste final do segundo metro do Livro III, que se segue à defesa da ideia de que todos os seres – reais ou imaginários – procuram o que lhes é natural:


O ramo dobra para baixo o seu cimo,
forçado em dado momento por poderosas forças,
mas se a mão que o verga o largar,
erguer-se-á para o céu, endireitando-se.
Mergulha Febo nas águas hespéreas,
mas de novo, por secreto caminho,
orienta o carro para o sítio onde costuma nascer.
Todas as coisas voltam a procurar
os caminhos que lhes são próprios,
e alegram-se quando a eles regressam,
e não perdura a ordem outorgada a coisa alguma,
a não ser que se trate de algo que ligue o princípio ao fim
e dê estabilidade ao orbe. (pp. 82-83)


A doçura do canto de Boécio alterna com o rigor lógico que conduz o leitor até uma reflexão deslumbrante sobre a importância do tempo como elemento distintivo do humano, não apenas em relação ao animal, mas sobretudo perante o divino. As páginas finais deste livro, em que se procura conciliar a existência do livre arbítrio com a presença de um deus omnipotente e, por conseguinte, conhecedor de todas as decisões humanas, preservam a suavidade do percurso mental que até aí se compôs, graças à fundamental articulação entre o pensamento filosófico e a linguagem poética, tão grata a George Steiner (patente no seu livro A Poesia do Pensamento, já por mim aqui comentado). Ao tempo linear dos humanos contrapõe a Filosofia uma espécie de tempo espacial, em que tudo está presente em simultâneo, independentemente de pertencer ao que os humanos designam como passado ou futuro. Regressamos, assim, ao ponto de partida deste texto, ao esboço de uma reflexão sobre o que seja «ser contemporâneo», e tocamos uma questão afinal decisiva na poesia da modernidade, de que deram conta obras maiores como, por exemplo, The Waste Land (1922), de Eliot, ou os Cantos (a partir de 1925), de Pound, na sua insaciável procura de abarcar múltiplos tempos e lugares.

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