sábado, dezembro 05, 2009

PEDRO MEXIA (2)

Na Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI, "Poemas Portugueses", que a Porto Editora acaba de editar, o poeta e crítico Rui Lage escreve com exactidão sobre Pedro Mexia:

"(...) Pedro Mexia faz da poesia crónica da rotina diária, apontamento do logro existencial, ecrã da solidão doméstica, divã onde reclina os fantasmas do amor e do sexo. Dotado de uma desarmante capacidade de observação do invisível no visível, da memória na matéria, e do cómico no sério, a sua poética, de cunho anglo-saxónico, aposta na descontrução da seriedade, transformando os pequenos falhanços em sabedoria (...). De Pessoa e Sá-Carneiro recupera uma auto-ironia triste, quase niilista, com que desfila, flâneur anónimo e espectral, numa Lisboa descaracterizada."

Pedro Mexia (Lisboa, 1972) faz hoje 37 anos. Bom pretexto para lembrar a sua poesia:




WALLACE STEVENS A CAMINHO DO ESCRITÓRIO (1999)

No caminho, Hartford endurece
ao mesmo tempo que se torna leve.
O outono deixa de ser outono.
Os galos não cantam.
Esse necessário mundo dos objectos
transmuda-se perante o olhar
do homem cansado, cansado mas febril
com tudo o que em si faz
o pensamento imaginante.

Em Hartford é sempre outono,
como em certas prisões. Connecticut amanhece
e surge o poema. Mrs. Halliwell vai anotá-lo
mal chegue ao escritório.

de "Duplo Império", edição do autor, 1999


§


GINA, CIRCA 1988
(2004)

Não ardia, a puta.
Bífidas emanações azuis e escarlate
carcomiam as páginas
de papel plastificado, que porém
se fazima fénix.
Iam sendo queimadas vulvas canibais
com legendas kitsch.
Bando de primos, num esconderijo
com fósforos, desfazendo dificilmente
a Gina que tínhamos comprado
sem intuito sexual.

de "Vida Oculta", Relógio d'Água, 2004


§


NOIVA DE DEUS
(2004)

Como no filme, era noiva de Deus,
confessou-me, ríspida, seu
perseguidor. Os seios
ainda facilmente me oprimem
o fôlego, anos passados.
Eu tentava a pouca arte, a repetição,
mas ela e Deus promessi
sposi (foi isto em Itália).
Álibi, imaginei, sempre generoso.
Mas não: em setembro abandonava
a roupa civil, escondia os cabelos
pretos, ia entregue. Não sei
como se passou: uma década quase,
nem o seu nome. Apenas
um poema como lápide, como
ironia, o volume ainda laico
do seu peito e a última vez
que concorri com Deus.

de "Vida Oculta", Relógio d'Água, 2004


§


Também aqui.

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