sábado, janeiro 21, 2006

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

(actualizado) Revelada na década de 90, a poesia de José Tolentino Mendonça (n.1965) aporta uma linguagem pura e cristalina onde o silêncio importa tanto quanto o escrito. A intertextualidade desta poesia com os escritos sagrados, conquanto mais ocupada em afirmar as coisas de todos os dias, reveste-a de um tom sublime e belo onde uma pretensa fragilidade desvenda ao invés uma imensa sabedoria. Padre e tradutor do Cântico dos Cânticos do hebraico, tem desenvolvido também significativa obra no domínio do ensaio, sendo um dos mais celebrados poetas da sua geração.


OBRA POÉTICA
A Noite Abre Meus Olhos (poesia reunida), Assírio & Alvim, Lisboa, 2006
O Viajante Sem Sono, Assírio & Alvim, Lisboa, 2009



A INFÂNCIA DE HERBERTO HELDER (1990)

No princípio era a ilha
embora se diga
o Espírito de Deus
abraçava as águas

Nesse tempo
estendia-me na terra
para olhar as estrelas
e não pensava
que esses corpos de fogo
pudessem ser perigosos

Nesse tempo
marcava a latitude das estrelas
ordenando berlindes
sobre a erva

Não sabia que todo o poema
é um tumulto
que pode abalar
a ordem do universo agora
acredito

Eu era quase um anjo
e escrevia relatórios
precisos
acerca do silêncio

Nesse tempo
ainda era possível
encontrar Deus
pelos baldios

Isso foi antes
de aprender a álgebra



A impressiva beleza do poema de José Tolentino Mendonça, A Infância de Herberto Helder, irrompe do tom de aparente inocência que atravessa o texto. Parece claro desde logo que o poema não cuida verdadeiramente da infância do poeta Herberto Helder – que assim é celebrado, – antes da presumível infância do narrador com a qual, implicitamente, seria possível identificar atalhos e levadas em comum. Tendo o autor tido, em concreto, essa experiência iniciática numa mesma geografia insular, aquilata que o mesmo pode ter acontecido com o poeta Herberto Helder.

Mais do que nos fixarmos somente na idade em que essa aprendizagem possa ter ocorrido, é tentador recortar do poema a excepcional envolvente em que aquela se deu. Mais do que rememorar essa infância por atitudes idílicas (“estendia-me na terra”), lúdicas (“ordenando berlindes”) ou inocentes (“não pensava”; “Não sabia”), o texto é exímio em revelar-nos um narrador sábio e avisado, na posse de conhecimento, que revisita a infância anos mais tarde com um olhar maduro e pleno de espanto, capaz de se reconhecer – já então – preocupado em apreender o mundo (“marcava a latitude das estrelas”), desconhecendo todavia (como é próprio da infância), quer a iminência dos perigos (“não pensava / que esses corpos de fogo / pudessem ser perigosos”), quer o imenso poder da palavra (“todo o poema / é um tumulto / que pode abalar / a ordem do universo”).

Não é por isso despiciendo que o autor tenha por três vezes lançado a estrofe com a anáforaNesse tempo” e uma outra vez tenha escrito “No princípio era”, numa clara intertextualidade com os textos bíblicos que, omnipresentes, assistem à respiração de toda a obra no seu apelo ao mais sublime, como se fosse Ele o interlocutor privilegiado desta escrita. Porque há desde o início, uma intenção indisfarçada de balizar o proémio da presença divina nesta infância. Se é claro que o autor “agora” acredita, já nessa altura “o Espírito de Deus / abraçava as águas”, já o poeta indagava “as estrelas” e “era possível / encontrar Deus / pelos baldios”. O que o distanciamento e a idade trouxeram de acrescido foi o reconhecimento da preciosa importância dessa presença embrionária numa consciência em formação, tanto quanto a evidência de que a sua permanência diária se tornou um desafio acrescido depois de se “aprender a álgebra”, – aqui modelada como um ruído, um rumor (em antítese com os “relatórios / precisos / acerca do silêncio”), – “álgebra” que não pode figurar senão o cálculo ou num sentido mais lato, o interesse e o calculismo que assistem a grande parte das atitudes do homem adulto, diversas das encontradas na infância, quer nas crianças quer nos anjos.

"Deus é a palavra mais perto de nós. Deus é a sombra que a sombra guarda”, explica-me José Tolentino Mendonça. “A única forma verdadeira de resistência é a exposição radical da fragilidade." Nesse sentido, este poema pode ser lido não como um salmo, pessoalíssimo, mas quasi como uma inflexão acerca do imperceptível afastamento que a vida adulta opera da sagaz pureza da infância, à maneira de uma “ilha”, afastada de excessos, onde qualquer um pode voltar a qualquer instante.




1 comentário:

Susana Bês disse...

Estou neste preciso momento a ouvir a Antena 2. Interessante coincidência. :)