terça-feira, janeiro 24, 2006
2 NOVOS POEMAS DE 2 NOVOS LIVROS
Fernando Luís Sampaio (Moçambique, 1960) regressa à edição com Falsa Partida (Assírio & Alvim, 2005), colecção de poemas onde num tom prosódico muito nítido o autor reúne estilhaços de uma relação falhada.
Um profundo desencanto pelo real e pelo amor percorre grande parte dos textos num desejado tom agreste que chega a esboçar rancor.
Entardecer representa, talvez, uma pausa do coração “esse pastor de ansiedades”:
ENTARDECER
Para o Fernando Pinto do Amaral
Uma água mineral e um café.
O cinzeiro cheio de fantasmas.
Um jogo de bilhar tardio disfarça
não saber o que fazer das mãos.
A chuva caía com aparato o chaval
serviu o café e a água fria que repousa
sob os meus olhos.
A rapariga moura trazia certamente
sandálias com uma imperceptível
chama de rancor. Pediu um copo de
sidra e rarefazia os olhos ao bebê-la.
Ouvi abrir-se uma clareira nas conversas
das mesas quando ela se ergueu
e os seus seios brilharam unânimes.
Manuel de Freitas (Vale de Santarém, 1972) acaba de editar A Flor dos Terramotos (Averno, 2005), livro onde a pequena morte quotidiana está omnipresente como extensa metáfora da vida desta feita, porém, sob o signo de um certo apaziguamento.
Não são tão trágicos estes poemas, nem tão amargos como em anteriores colecções parecendo o poeta grifar que se tudo se encaminha para a morte, pode essa lenta peregrinação por corpos e por ruas ser ao menos, irónica.
É o próprio que se ri do desencanto da vida: “Estão a perceber agora/ por que é que eu gosto tanto/ de tabernas?”.
Passeio Alegre é uma belíssima sequência mas fiquem antes com este
BECHEROVKA
Norueguesa, alta, de um moreno
duvidoso que sorria muito.
Pedia-me insistentemente para não estar
triste como deveras estava.
E pagou-me, creio, o último copo,
antes de me perguntar “o que fazia”.
Escrever, sobre a morte, não é
exactamente uma profissão.
Mas foi a resposta que lhe dei,
enquanto um guardanapo qualquer
abreviava, só para ela, a minha “obra”.
Nunca saberei se percebeu a letra,
se comprou os livros, se chegou
a ouvir o que em péssimo francês
lhe tentei dizer nessa noite, a mais perdida.
Os versos são quase sempre isto: um modo
inaceitável de dizer que não tocámos o corpo
que esteve, por uma vez, tão próximo
de nós – e que nem um nome breve nos deixou.
Etiquetas:
- Poesia portuguesa,
FERNANDO LUÍS SAMPAIO,
MANUEL DE FREITAS
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2 comentários:
"Não tivesse tocado no vidro, não teria entrado no poema."
1 grande abraço, amigo, n.
O "nome breve" é o "nome próprio". Ficou apenas o apelido. Eu gosto muito...
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