domingo, dezembro 24, 2006

EDGAR LEE MASTERS

O livro mais conhecido de EDGAR LEE MASTERS (1868-1950) é “Spoon River Anthology”, e uma boa parte foi vertida para português pelo poeta José Miguel Silva, numa tradução bem representativa da antologia e que respeita sempre o coloquialismo da escrita do americano. Em “Spoon River Anthology” (edição de 1915, recebida com entusiasmo por Ezra Pound), Lee Masters defolha uma extensa galeria de personagens de uma pequena cidade rural das margens do rio Spoon, retratos esses, porém, tomados sempre como epitáfios: é que é já enquanto mortos que as personae dos poemas falam de suas vidas, das suas ilusões, dos seus segredos, dos seus casos amorosos, dos seus crimes, das suas traições, dos seus conflitos, num tom de inevitabilidade tão lógica quanto absurda, tão humorística quanto filosófica. Admirador confesso de Whitman – de quem chega a escrever uma biografia e de cuja poesia pede emprestado um gosto assumido pelo verso livre expressivo e o tema implícito de uma América genuína e grandiloquente – Lee Masters faz-nos mergulhar num realismo doloroso comum a outros escritores da Escola de Chicago, nas profundezas de uma América de província, agrícola, onde a ideia é levar o leitor a identificar-se em vida com algum dos aspectos da vida que foi a dos mortos que agora falam: padres, advogados, juízes, prostitutas, tanoeiros, entre tantos outros. É no mínimo irónico que ele próprio, Lee Masters, repouse também, à sua morte, nesse mesmo campo santo de Petersburg de onde deu voz a tantos arquétipos. A vontade era deixar aqui cinco ou dez dos poemas que José Miguel Silva tão bem soube verter para português, para melhor espelhar a forma como o livro se encontra organizado e o modo como certos poemas dialogam entre si: aqui e ali, a mesma situação é contada em dois poemas consecutivos pelas duas personagens envolvidas na situação, em versões completamente distintas. Tal não é possível e dos 75 poemas que o nosso poeta traduziu (edição “Spoon River – Uma Antologia”, Relógio d´Água, Lisboa, 2003) seleccionei estes três como appetizer. Mas fica o recado: este é um dos modernistas americanos que vale a pena ter e ler de costa a costa.



A. D. BLOOD

Se vocês aí na vila acreditam que fiz bem
em ter fechado as tabernas, acabado com o jogo
e em ter arrastado a velha Daisy Fraser à presença do juiz Arnett,
entre tantas outras cruzadas para purgar os pecados do povo:
então, por que permitis que Dora, a filha da chapeleira,
mais o inútil do filho de Benjamin Pantier
venham à noite fazer de minha campa a sua ímpia almofada?



...



FRANKLIN JONES

Se pudesse ter vivido mais um ano,
teria acabado a minha máquina voadora,
tomando-me com isso um homem rico e famoso.
Faz sentido, portanto, que ao artesão que adorna a minha lápide
lhe tenha saído algo mais parecido com um frango.
O que é a vida, no fundo, senão sair do choco
para correr no quinteiro
até ao dia da degola?
A diferença é que o homem tem um cérebro de anjo
e desde o princípio vê o machado.



...



BARNEY HAINSFEATHER

Se o comboio regional para Peoria
tivesse apenas descarrilado, talvez eu escapasse com vida;
e nesse caso escaparia deste sítio.
Mas como ardeu, eles confundiram-me
com John Allen, que foi enviado para o cemitério judeu
de Chicago, e confundiram o John comigo. Eis a razão por que estou aqui.
Já era mau gerir uma loja de roupa nesta cidade,
mas ser cá sepultado - que horror!



... (E mais este, e vocês prometem que encomendam o livro…)



SEARCY FOOTE

Eu queria ir para a universidade,
mas a minha tia Persis, que era rica, não me ajudava.
Dediquei-me, por isso, a arranjar jardins e relvados.
Com o dinheiro que ganhei comprei os livros de John Alden
e tive que lutar para sobreviver.
Eu queria casar-me com Delia Prickett;
mas como podia fazê-lo, com o pouco que ganhava?
E lá estava a tia Persis, com mais de setenta anos,
sentada na cadeira de rodas, meia morta já,
com a garganta paralisada. Quando comia
parecia um pato, a sopa a escorrer-lhe da boca.
Porém era gulosa, e investia o dinheiro
em hipotecas, sempre consumida
com as contas, mais as rendas e as letras.
Nesse dia estava eu a serrar lenha para ela
e, nos intervalos, ia lendo Proudhon.
Entrei dentro de casa para beber um copo de água
e lá estava ela adormecida na cadeira.
O livro do Proudhon estava em cima da mesa,
e em cima do livro o frasco de clorofórmio
que ela por vezes tomava contra as dores de dentes.
Embebi em clorofórmio um lenço de mão
e pressionei-o contra o seu nariz até ela morrer.
Oh, Delia, Delia, foste tu e Proudhon
quem me deram forças para isso, e o médico legista
concluiu que a morte se devera a uma paragem cardíaca.
Casei com Delia e fiquei com o dinheiro –
Enganei-te bem, Spoon River, ou não?





2 comentários:

Mauro Pereira da Silva disse...

Sinceramente, não conhecia este autor. Abraço.

clarinda disse...

Comprei-o tão logo saiu esta edição. Sem dúvida extraordinário! aquela cidadezinha de interior, aquela vidinha posta a descoberto nos epitáfios, aquela mesquinhez.Vale a pena ler!