terça-feira, maio 15, 2007

Poesia & Lda, feito pelos seus leitores - AUGUSTO FREDERICO SCHMIDT

"Alô, João Luis
conheci o blog Poesia Ilimitada há pouco. Quero dizer, fiz uma única visita e gostei imensamente do conjunto de poemas. Existiu um poeta brasileiro, atualmente meio esquecido pela crítica, que escreveu, creio, um dos mais belos poemas em língua portuguesa. É o AUGUSTO FREDERICO SCHMIDT e o poema, Visita à Casa Materna. (...) Talvez seja bom dizer algumas palavras sobre seu autor. Nascido em 1906, no Rio de Janeiro, falecido em 1965. Fez parte da "segunda geração dos modernistas", mais por uma questão histórica, ou temporal, do que por estilo ou tendência. Sua poesia muitas vezes é sentimental demais e não se encaixa no "modernismo" brasileiro. Talvez apenas o uso de versos livres, quase que exclusivamente, possa vincular Schmidt a algum modernismo. É, antes disso, um romântico deslocado, com uma voz "messiânica", certamente inédita àquela altura dos acontecimentos. Foi diplomata e com trânsito no métier político de sua época. Não é muito visitado pela crítica e, mesmo em sua época, era considerado, às vezes, como um quase reacionário, ultrapassado, ou algo assim. No entanto, Schmidt produziu passagens que poucos poetas, em qualquer idioma, alcançam. (Evidentemente, a última frase é uma opinião pessoal). O poema a seguir tem a marca de seu estilo condescendente, mas é ingenuidade atribuir a Schmidt alguma ingenuidade. Diga você, João Luis, se estou muito enganado... Bem, vamos ao poema:


VISITA À CASA MATERNA

Neste dia de maio, vim ver-te, Mãe,
Vim a esta tua casa
Construída de pedras cinzentas,
Enfeitada por uma cruz e um coração de mármore.
Vim repousar a cabeça sobre o teto do teu lar.
Não te trago muitas aflições, neste dia de festa,
Não estou em desespero.
Sou um homem maduro, mais velho
Vinte anos do que tu, quando me deixaste nesta terra,
Adolescente entre os homens.
Já vi mais coisas do que viste e tive mais esperanças do que tu,
Que eras lúcida e triste desde a juventude.
Recolhi muitos desenganos; e seguirei até a morte assim
Como sou, incerto, cego, orgulhoso,
Com as desesperanças se acumulando sempre.

Aqui estou, Mãe, diante de ti, homem completo,
De cabelos grisalhos, machucado e exaltado pela vida.
Um homem ferido e estranhamente compensado pela vida,
Um homem já meio do outro lado, vergado,
Curvado ao peso de pecados e erros,
De responsabilidades, de contradições e de amarguras.
Aqui estou diante de ti, Mãe,
Aqui vim
Pedir-te que me perdoes e me justifiques.


Sou quase um velho; durante mais de meio século
Andei pelas estradas da terra, atravessei desertos,
Contemplei paisagens geladas, toquei no fundo
Da minha própria miséria e das misérias alheias.

Durante muitos anos, enquanto dormias aqui,
Fui levado para exílios e encontros de toda a espécie.
Este teu filho é um homem vivido,
É um navio provado por muitos mares,
Um navio batido, curtido por ventos e tempestades.

É um navio perdido na névoa, este homem que aqui está,
Este ser usado que procura sua mãe.
É um velho navio, é um velho homem.
Não se parece, em quase nada,
Com aquele a quem disseste adeus, para sempre,
Na hora da partida, em junho de 1922.

É um ser cansado, um pássaro exausto
Que procura o seu ninho remoto
Nesta casa de pedra em que te escondes,
Em que repousas de uma breve existência.
É um homem este que aqui está,
Em quem mal reconhecerias o filho teu,

O sensível e verde aventureiro, pronto
para os nobres impulsos,
Mas tão incerto e tão fantasioso,
Tão incapaz de perseverar e de crer longamente,
O ser matinal que tremias, Mãe, ao deixá-la, perdido
No mundo, o ser cujo destino te preocupava
Diante da revelação de tantas inconstâncias.


É um homem experimentado este que aqui está, Mãe,
mas é um poeta.
E, porque é um poeta, muito lhe será perdoado.
E, porque é um poeta, não perdeu o dom
De olhar a face da Infância
E de te ver, Mãe,
Como te está vendo nesta hora,
Com os mesmos olhos com que te contemplava
Outrora, quando eras a sua Estrela,
E o seu abrigo, o centro do seu mundo,
A força e a lei que o conduziam,
Quando eras tudo, toda a sua alegria e proteção.

Deus permitiu que em teu filho
Não se perdesse o dom de olhar
O mundo em certos instantes
Com a poesia dos que não foram poluídos,
Dos que não foram enganados pela vida.
Aqui estou, debruçado sobre o teu tÚmulo, Mãe,
E eis que te ergues diante de mim,
E eu te vejo não como adormeceste em Deus,
Pálida, vestida com o burel do Carmo,
Mas matinal e alegre, coroada de flores,
Viva e serena, na primeira e gloriosa maternidade,
Com as tranças repartidas, e no olhar
A luz da beleza intocada.
Assim te pode ver teu filho, de olhos fechados.
Assim te pode ver este homem de gestos cansados,
Este segador no fim da sega,
Este quase velho, debruçado sobre o teu túmulo.
Assim apareces, Mãe, ao filho que deixaste tão cedo,
Entre as perdições do mundo.

Mãe, aqui estou no dia de hoje,
Batendo à tua porta, procurando a tua companhia.
Não me desconheças nem perguntes quem sou.


No fundo de mim mesmo, apesar de tudo o que houve,
Das incompreensões, do pó e da amargura,
Das misérias que pratiquei e que praticaram
Contra mim; apesar da experiência do ódio e do amor,
amargos ambos,

Sou o mesmo filho que deixaste
Na orfandade
Quando partiste,
Estrela materna, flor de beleza,
Que o vento gelado crestou na juventude.


Um abraço e parabéns pelo blog.
Guga Schultze

7 comentários:

João Luís Barreto Guimarães disse...

Guga,

muito obrigado pela sua colaboração. Não tenho dedicado tanta atenção como provavelmente devia aqui, no Poesia Ilimitada, à poesia brasileira. Ainda mais agora que venho de conhecer "pessoalmente" a poesia de Eucanaã Ferraz e António Cícero, dois excelentes poetas brasileiros e duas excelentes pessoas (ambos me recomendaram vivamente a leitura da poesia de Waly Salomão...)

O poema que me enviou não é exactamente o género de poema que obtém o meu favor mas assim mesmo não quis deixar de honrar a sua missiva. Compreendo que é um poema datado, escrito numa época específica do século passado mas assim mesmo tenho alguma dificuldade em aprová-lo no "teste do tempo" pela minha própria incapacidade enquanto leitor em aderir a um excesso - mas que sei eu? - de derramamento emotivo (crítica que aliás o Guga antecipa), que ultrapassa talvez aquelas caracteristicas que entendo um poema, qualquer que seja a época, deve ter: economia e sobriedade.

Receba um abraço amigo,
João

Daniel Abrunheiro disse...

Sem dúvida. Ver, neste mesmo blog, o poema do irlandês Thomas McCarthy a propósito da morte do pai: a subtileza do final vale tudo.

inominável disse...

Bom, dizer que este poema é ingénuo, é chamar ingénuo tb ao "poema à Mãe" de Eugénio de Andrade ou aos poemas de José Luís Peixoto, quando ele se refere ao lar, à casa dos pais e à memória...

E ingénuo não é... longe disso... O que mais gosto nele? Da sua temporalidade circular...

sephi disse...

Acho o poema surpreendente. Aparentemente a avaliação em termos de «sentimentalidade exagerada» de «extravazar de emoções» etc...estará bem fundada na letra do texto. Mas a surpresa é que, na minha opinião, esta avaliação erra, quanto ao facto do poema. Tenha ele, que tem, todo o vocabulário das atitudes fora de prazo,a dicção é de uma extraordinária economia e sobriedade, para usar os paradigmas de João Luís Barreto Guimarães. Haverá talvez aqui enigma digno de investigação. E depois a publicação soa paradoxal acaompanhada pela desconsideração crítica, simpática e hesitante.

Guga Schultze disse...

Olá, João. Gostaria de agradecer muitíssimo a receptividade. Foi uma grata surpresa. Concordo com sua visão poética, em termos gerais: economia e sobriedade. São duas características que aprecio em poesia, ou, talvez até, em toda a literatura. No entanto, não posso me furtar à presença de um certo enigma a envolver esse poema (e alguns outros) de Schmidt, como muito acuradamente o leitor JoaoPaulo ponderou. Há, digamos, uma certa sabedoria poética em suas linhas, uma estranha concisão, a despeito do prolixo elemento sentimental que se estende através do corpo do poema.
Bem, gostaria de agradecer ainda pela sua cortesia em se desculpar pela ausência da poesia brasileira neste blog. Não é o caso para tal, acredite. Este blog é bom para todos que gostam de poesia, em língua portuguesa ou não. Grande abraço!

danilo disse...

acabei de descobrir esse seu blog, buscando por poesia anarquista... também escrevo poesia estou em www.atipoesia.blogspot.com. por falar em poesia brasileira, conhecem manuel de barros e adélia prado? demais...
ótimo blog o seu. estarei sempre visita\ndo
Danilo.

Tamborim Zim disse...

P mim este poema é comoventíssimo e de uma beleza incontestável e intemporal. Grata pela partilha.