domingo, dezembro 24, 2006

RUI LAGE

Depois de “Antigo e Primeiro” (Quasi Edições, 2002) e de “Berçário” (Quase Edições, 2004), RUI LAGE (Porto, 1975) surgiu neste Outono com livro novo, “Revólver” (Quasi Edições, 2006).
Apetece saudar a maior firmeza desta voz, numa poesia musical onde o abundante uso da rima interna cimenta versos de uma maior força temática, a que não é estranho o esboço de uma cosmogonia pessoal. A contemporaneidade dos media, certas preocupações sociais (à semelhança de outros poetas contemporâneos de que é exemplo superior Jorge Gomes Miranda), como também a religião e a ciência, informam a primeira parte do livro intitulada “Licença de porte de arma”, onde está presente, em poemas de um expressionismo livre de espartilhos, um pessimismo irónico e provocador. Esta é também uma poesia atenta ao detalhe, ao mais insuspeito pormenor, à “pedra que rola da vertente / segundos depois de passares”, aos jogos de palavras (“fabrica o passado/ e pressente o futuro”; “a teus lábios darei ouvidos”), e ainda, algo que tanto prezo, à tradição (Pina, O'Neill, Assis Pacheco, Cesariny, Eugénio, Inês Lourenço, entre tantas outras leituras).
A segunda parte do livro “Carreira de tiro”, convoca a cidade através dos locais onde o uso do revólver poético é frequente, tendo-me agradado particularmente a sequência de poemas sobre cafés. “Caça Furtiva”, de onde retirei o poema que se segue, “O País à Porta” constitui a terceira parte da obra, onde se materializa a metáfora que toma o poder da palavra poética por arma letal. Por último, a quarta e última parte “O revólver vazio”, coloca em perspectiva poemas onde a noite é, também ela, um eufemismo da morte.



O PAÍS À PORTA

Se pudesses, O'Neill, ver hoje o teu país,
(ou tu, Assis Pacheco, filho pródigo
destes quintais floridos
)
velho de oito séculos e pouco mais velho
desde que o deixaste,
país que secretamente não vota
para não se maçar
enquanto furta com arte as gaiolas vizinhas
a cantar nas paredes caiadas,
país com mais que fazer
(futebol para ver
e mato para queimar);

se pudesses vê-lo agora
não levarias a peito,
mas confirmarias, estou certo,
que tem defeito de nascença
ou de fabrico,
mais valendo, por isso,
como em vida tua valeu,
deitar por terra a lança do ódio,
fechar a navalha do tédio,
sacudir o ombro amigo da solidão
e rir sonoramente de tudo,
talvez não tanto à porta da pastelaria
como, hoje em dia, à porta dos chineses,

mas rir sonoramente de tudo, dizia,
- de ti mesmo,
sobretudo.

2 comentários:

Vida Involuntária disse...

Muito bem, Rui.
Pode-se glosar toda uma tradição literária, mesmo falando de coisas não "sublimes". É isso que não entenderam ainda alguns formalistas do vazio das próprias cabeças ou de "profissões" metafísicas.

Os pássaros, as asas, as gaivotas, a obsessão "azul" ou pan-erótica, têm hoje muito pouco alibi para absorver poemas de habitantes de um Globo em quase inevitável declínio ecológico e climástico, ou enquanto elemento humanóide de sociedades onde o passar dos milénios mantém intactas todas as iniquidades.

Houve alturas de cantar "azul", "gaivotas", "milagres de Eros", "lúdicos fingimentos", "órficos poderes" e coisas "para sempre". Podemos relê-las e deliciarmo-nos com tempos de esperança, vagar e ideal, que já não podemos encontrar.

I. L.

Anónimo disse...

Caros compatriotas, gostei e do poema e dos comentários; mas... limitar a liberdade temática faz-me lembrar a arte dos países comunistas. Ai de quem criasse fora dos temas do partido...!

D'Almeida J./ Bruxelas